Cookies e Política de Privacidade
A SIGNIS Agência de Notícias utiliza cookies para personalizar conteúdos e melhorar a sua experiência no site. Ao continuar navegando, você concorda com a nossa Política de Privacidade.

"Ser presença de Deus": religiosa brasileira fala da experiência missionária no Haiti

Em entrevista à Agência Signis, Ir. Liani Postai, da Congregação das Irmãs de Santa Catarina de Alexandria, fala sobre sua missão e a situação do país, novamente arrasado por um terremoto.

Há 3 anos - por Cléo Nascimento
Ir. Liani presta atendimento a vítima do terremoto no Haiti.
Ir. Liani presta atendimento a vítima do terremoto no Haiti. (foto por Arquivo pessoal)
 
Ir. Liani Postai atendeu prontamente nosso pedido de entrevista no início da noite desta terça-feira (17). Pediu-nos apenas para aguardar um pouco, pois estava fora de casa. Por volta de 21h, horário do Haiti (22h, Brasília), disse estar disponível para falar por vídeo chamada. Com voz cansada, mas sorriso de dever cumprido, pediu desculpas e, como se fosse preciso, justificou-se pela demora: "estava atendendo alguns feridos, é uma situação muito difícil".
 
Desde o terremoto, de magnitude 7,2, ela e outras religiosas não dormem dentro de casa, em Les Cayes, uma das regiões mais afetadas do país. E, embora a construção tenha uma estrutura antissísmica, sofreu rachaduras que podem ceder devido aos pequenos tremores que acontecem desde o último sábado (14).
 
O atendimento de Ir. Liani é muito requisitado. Como enfermeira, ela assiste a população em uma de suas principais necessidades, a saúde.
 
Muito pacientemente, a consagrada da Congregação das Irmãs de Santa Catarina de Alexandria, falou da experiência e desafios da missão no Haiti, onde está há 4 anos.
 
 
 
Mais uma vez o Haiti é impactado por uma tragédia. Um grande terremoto, seguido por um ciclone que torna ainda mais difícil o trabalho de socorro e assistência às vítimas. A partir da sua realidade, qual a situação neste momento?
 
É uma realidade muito difícil. No sábado, pela manhã, houve o terremoto que varreu as casas aqui da região. A maior parte das casas está destruída, no chão. A nossa casa não chegou a cair, porque no ano passado nós fizemos uma reforma com estrutura antissísmica muito forte e, mesmo assim, teve algumas rachaduras. Após o terremoto, não voltamos a dormir nela por medo, pois ainda ocorrem pequenos tremores. Mas, as casas vizinhas, em toda a região são um monte de pedra, é horrível, morreram pessoas... O ciclone começou na noite de segunda(16), ao escurecer. Foi uma chuva muito forte durante a noite inteira com ventos que foram avançando.
Temos certeza de que a oração do povo ajudou para que a situação não fosse ainda pior: os ventos foram afastados para o mar. Eram previstos ventos com mais de 100 quilômetros por hora, mas a intensidade foi diminuída para 41 quilômetros por hora. Ainda assim, foram fortes. Isso fez com que a gente ficasse em vigília nessa noite, ninguém dormiu. Com a chuva forte, a maior parte do povo ficou embaixo de árvores; quem conseguia alguma lona, conseguia se proteger melhor. No entanto, o vento não permitiu muito essa segurança. Não houve tempo para a gente conseguir arrumar lonas para dar ao povo alguma proteção. É, realmente muito triste, difícil, mas o povo está acostumado a sofrer e acolhe esta situação de forma impressionante. É uma realidade de chorar.
 
O Haiti é um país que sofre crises sobre crises. Para além, dos desastres naturais, tem problemas sociais, econômicos e políticos. Recentemente o presidente da república, Jovenel Moïse, foi assassinado dentro de casa. Ou seja, é uma instabilidade muito grande que afeta diretamente a sociedade. Pode nos falar um pouco dessa realidade?
 
Começando pela segurança, quase não existe, porque as gangues tomam conta do país, mesmo antes do assassinato do presidente. Por exemplo, nós não temos condições de ir de carro até a capital Porto Príncipe, porque os carros são visados e os assaltos são comuns. Na semana passada, um padre jesuíta brasileiro, amigo nosso, foi sequestrado e ficou quatro dias em cativeiro. Em troca, eles pedem muito dinheiro. Eles estão com a força e o poder nas mãos, e ninguém consegue fazer nada.
Economicamente falando, a maioria do povo vive um nível abaixo da linha da pobreza. Evidentemente, existem aqueles que se beneficiam de verbas públicas. Quando a gente entra nas casas, não encontra o mínimo necessário para subsistência, inclusive na questão de estrutura. Energia elétrica, por exemplo, é bem precária, praticamente não há; fogão a gás, a maioria nem conhece. Aqui na região, as pessoas ainda conseguem tirar da agricultura a alimentação, o que melhora um pouco a qualidade de vida em relação a de quem mora na cidade.
A comunicação é feita por empresas do exterior ou por haitianos que foram buscar tecnologia de fora e se tornaram fornecedores de serviço, então, conseguimos ter uma certa qualidade de conexão. Nessa nossa conversa, até agora, não tivemos queda, mas tem horas que não dá.
 
A senhora falou sobre insegurança e tem repercutido informações sobre ação de grupos armados, dificultando a chegada de suprimentos. Isso tem acontecido na sua região?
 
Aqui no interior nós não percebemos tanto. Mas, em outras regiões, isso acontece com frequência. Esses grupos atacam os barcos, os grandes navios e impedem que caminhões levem os mantimentos para outras localidades. Da mesma forma, acontece com o o combustível, o diesel e a gasolina é um eterno problema aqui. Existe uma insegurança no abastecimento.
 
Como a Igreja Católica, através de seus movimentos, organizações e de institutos religiosos, como o da senhora, tem se mobilizado?
 
Infelizmente, durante este período do terremoto, os templos não puderam abrigar as famílias, porque também foram afetados. Mas, a Igreja, como instituição, a partir da sua realidade, tem buscado amenizar o sofrimento da população. Aqui, existe um projeto internacional chamado Food for the Poor que, através da Cáritas, envia permanentemente alimentos e produtos de higiene para o povo e a maioria das paróquias se inscreve neste projeto para receber estes mantimentos. Mas além dos católicos, outras denominações também tem contribuído de alguma maneira. É bonito de se ver essa solidariedade. Nós abrimos a nossa casa... por exemplo, com o terremoto, o abastecimento de água foi prejudicado. Então, nós disponibilizamos nosso poço e o povo vem em romaria, durante todo o dia, buscar água. Nós, juntas com os frades capuchinhos, compramos lonas para montar alguns abrigos. Hoje de manhã, eu mesma preparei uma panela grande de macarrão e distribuímos ao povo para que, ao menos, tivesse um desjejum.
 
Aproximadamente, quantas pessoas foram atendidas?
 
Hoje, foram mais ou menos umas 500 pessoas, talvez mais. Não é todo dia que temos esse número, mas com o ciclone, a população ficou ainda mais vulnerável. E quem tem o mínimo em casa, não vem buscar mais, são muito educados. Mas não é um mérito nosso, é um compromisso social e moral de poder fazer alguma coisa para essas pessoas.
 
E o governo tem ajudado?
 
Até agora não vimos um movimento do próprio governo pela população afetada. O que a gente vê são equipes de resgate da República Dominicana, do Canadá, dos Estados Unidos, da França, da Venezuela e outros, que vêm para ajudar, especialmente na área da saúde. Eles usam helicópteros para o transporte, socorrem feridos, dão uma assistência muito boa. A principal ajuda vem de fora.
 
Não por acaso, a padroeira do Haiti é Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Que relação esse povo tão sofrido tem com a fé e a devoção popular?
 
Isso, certamente! Eles tem uma devoção especial a este título de Maria. Quando alguém invoca Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, não diz apenas "rogai por nós", a resposta é mais longa, algo como "protegei o Haiti, protegei à Igreja, protegei às famílias e protegei o mundo inteiro". É muito bonito.
 
 

 
Estamos vivendo o mês vocacional. Como religiosa, missionária, o que este trabalho representa para a senhora?
 
Eu preciso lhe dizer que neste final de semana, quando no Brasil se celebrou o dia da Vida Consagrada, para mim foi muito forte. Viver a vida religiosa numa realidade dessa, como diz o Papa Francisco, uma "Igreja em saída", é um desafio grande. A gente também ficou traumatizada com o terremoto e viver essa esperança, essa consagração, essa entrega ao Senhor dessa forma, sem sentir a firmeza do chão embaixo dos pés, é muito forte. É nesse momento que a verdadeira consagração acontece. Por isso, me sinto extremamente feliz em poder responder, ao menos um pouco, essa coerência do Evangelho. Jesus nos pede isso: estar entre aqueles que necessitam. E, em meio a essa tragédia, estamos tentando ser essa presença de Deus no meio dessas pessoas. A fundadora da nossa Congregação, a Bem Aventurada Madre Regina nos deixou um lema que levamos na vida: "Como Deus quer". E Ele vai os dando desafios mas, ao mesmo tempo, vai nos acompanhando, vai nos protegendo a cada passo, nos permite que a gente caminhe no meio desse povo sofrido. Com meus quase 64 anos de vida, 41 de vida religiosa, posso lhe testemunhar que estou no lugar certo e me sinto muito feliz em poder estar aqui. Não quero retornar a um bem-estar, não.

Galeria de imagens

Comentários

  • Esta notícia ainda não tem comentários. Seja o primeiro!

Mais lidas