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“Políticos e religiões devem ter sempre em mente que existem para servir”

Quando partidos superarem sua visão corporativista e, como devem fazer as expressões religiosas, voltarem-se para o bem comum, cumprirão o seu papel na sociedade, afirma o sociólogo Francisco Borba

Há 2 anos - por Luís Henrique Marques
Francisco Borba: Família, jovens, idosos e vulneráveis deveriam ser prioridade em termos de políticas públicas
Francisco Borba: Família, jovens, idosos e vulneráveis deveriam ser prioridade em termos de políticas públicas (foto por Jornal PUC-SP)

Dando sequência à série de entrevistas sobre o atual momento político brasileiro e, tendo em vista as eleições majoritárias deste ano, a Agência de Notícias SIGNIS convidou o sociólogo Francisco Borba Ribeiro Neto. Ele é também biólogo de formação (área na qual realizou mestrado e doutorado pela Universidade de São Paulo-USP) e, atualmente, atua como coordenador do Núcleo Fé e Cultura da Pontifícia Universidade Católica  de São Paulo (PUC-SP), centro de estudos interdisciplinares voltado à reflexão sobre os problemas do mundo pós-moderno e globalizado à luz da Doutrina Social da Igreja.

Nesta entrevista, Francisco Borba faz uma crítica à tendência à postura corporativista dos partidos políticos no Brasil, apresenta propostas para um diálogo que seja capaz de superar a polarização político-ideológica e reflete sobre o caminho de convergência possível entre política e religião, entre outros assuntos. Confira:

 

Qual a avaliação que você faz do quadro político partidário atual do Brasil hoje?

Nosso maior problema é que nossos partidos são fortemente corporativos, orientados pelos favorecimentos a políticos e seus grupos, e pouco programáticos, orientados por uma visão de mundo e um projeto de sociedade. Em qualquer país democrático, partidos combinam, em algum nível, o aspecto corporativo com o programático. Porém, o Brasil é um caso extremado de preponderância do corporativismo.

Por exemplo: entre nós, o mesmo partido, independentemente de sua posição no espectro ideológico, pode compor a base parlamentar de um presidente de esquerda em um mandato e de outro, de direita, no mandato seguinte. Não se trata de uma união em função de ideais mais amplos, mas sim de um jogo de favorecimentos particulares onde pouco conta o bem comum.

O problema se agrava porque nossos esforços têm sido mais no sentido de reduzir o número de partidos e fortalecer a unidade partidária do que em garantir um posicionamento programático claro e transparente para o eleitor. As estruturas de poder internas dos partidos e do próprio Legislativo favorecem lideranças já viciadas no jogo corporativista e dificultam que novos políticos, mesmo quando eleitos, consigam se expressar e fazer a diferença. Assim, muitas vezes se reforça um sistema inadequado para a construção de uma “política melhor”, para usar a expressão do Papa Francisco na Fratelli tutti. Mas o reforço não deveria acontecer sem a devida “purificação” do sistema.

Os militantes por mudanças depositam, a meu ver, demasiada esperança em mudanças estruturais, como seriam o parlamentarismo e o voto distrital, sem se dar conta que o mais importante não é a forma, mas sim o funcionamento efetivo do sistema político. Toda estrutura tem aspectos positivos e aspectos negativos, cabe a seus operadores maximizarem uns e minimizarem outros. Por isso, o mais urgente no presente é a renovação da mentalidade política tanto de eleitos quanto de eleitores – mesmo que seja um processo a médio e longo prazo.

Tenho muito esperança nas várias organizações que promovem a formação de novos quadros políticos e/ou o aperfeiçoamento dos quadros já existentes. A variedade de posicionamentos ideológicos que encontramos nessas organizações é uma riqueza. Mesmo quando não concordamos com suas posições, a pluralidade potencializa o surgimento de novas posições que atendam aos diversos setores sociais e grupos políticos. Além disso, novos políticos tendem a ser menos refratários ao diálogo e mais capazes de chegar a consensos que construam o bem comum.

Quero deixar claro que, apesar dos problemas que se acumulam, acredito que no conjunto o Brasil de hoje é mais maduro politicamente do que o Brasil do passado. O fato de as melhorias demorarem mais do que gostaríamos não deve nos desanimar, mas sim nos levar a um comprometimento sempre maior com o bem comum.

 

Quais as principais demandas sociais, econômicas, políticas e culturais para as quais os candidatos ao Executivo e Legislativo federal devem ter maior atenção hoje, segundo a sua avaliação?

A primeira demanda é combater o aumento da pobreza que a pandemia e a crise econômica trouxeram. São necessárias, no curto prazo, ações assistenciais de emergência e projetos que gerem empregos e renda. Contudo, devem estar articulados com planos de médio e longo prazo que permitam uma retomada do desenvolvimento econômico. Para isso, temos que superar os debates ideológicos sobre temas como gastos públicos e privatizações, que frequentemente orientam-se mais por posições preconcebidas do que por análises da realidade, assumindo ações pragmáticas que permitam o crescimento da infraestrutura do país, a melhoria da qualidade da educação e mais investimentos nos setores produtivos.

Se, nos próximos quatro anos, o Brasil conseguir avançar nessas pautas, já estará bom demais.

No plano social, considero fundamental colocar a família no centro das políticas sociais do Estado. Temos grandes carências no cuidado com a infância e a juventude e, com o envelhecimento demográfico da população, vamos enfrentar dificuldades cada vez maiores também com os idosos. A família é o lugar onde todas as etapas da vida se encontram e se ajudam mutuamente. Por isso, deveriam ser o ponto focal das políticas sociais: ajudar a família é o modo mais eficiente de ajudar os jovens, os idosos e os mais vulneráveis em geral. Nesse campo, especificamente, não posso deixar de citar o trabalho do Family Talks, uma organização dedicada ao fomento de políticas pró-família que está começando um belo trabalho no Brasil e pode ajudar muito na compreensão desse tema.

Sei que existem muitos desafios no campo cultural e ideológico, que incomodam direita e esquerda, progressistas e conservadores. Contudo, creio que temos de compreender que a cultura e a moral são um terreno próprio da ação do cidadão, dos movimentos e organizações. Por mais que a ação do Estado seja impactante nesse espaço, temos que priorizar o trabalho cultural que nasce na sociedade, pois a intervenção estatal será sempre autoritária e trará efeitos indesejados no futuro.

 

Quais caraterísticas fundamentais o eleitor deve considerar na escolha dos seus candidatos?

O importante é que o eleitor e o candidato compartilhem de um projeto de sociedade e construção do bem comum, tendo já trabalhos concretos em prol desse projeto. Mais do que ideias abstratas, o que conta é partilharem um mesmo movimento social. Não me refiro aqui, obrigatoriamente, a um movimento organizado, mas a um conjunto de trabalhos e lutas que apontam para um mesmo ideal de sociedade. Quanto mais estamos comprometidos com a construção de uma nação melhor, mais pessoas com o mesmo compromisso encontramos – e mais fácil encontrar bons candidatos em quem votar. Nossa dificuldade de encontrar bons candidatos reflete a nossa falta de engajamento político ou a falta de articulação política das obras em que trabalhamos.

Quando estamos nessa situação (que é a da maioria de nós, sejamos francos) de não encontrar candidatos evidentes para todos os cargos em disputa, temos que olhar duas coisas basicamente: o histórico de compromissos e lutas do candidato e os indícios de que ele realmente mantém esses compromissos e não é apenas mais um demagogo dizendo fazer o que não faz.

Desconfio da aplicação de princípios abstratos, porque eles são facilmente manipulados por demagogos. Em alguns casos, dizem estar comprometidos com princípios com que não se comprometeram; em outros, até defendem uma causa específica, mas são fisiológicos ou até corruptos nas outras questões. De qualquer forma, considero que alguns princípios podem nos ajudar a avaliar a conduta dos políticos (desde que sirvam para nosso discernimento e não aplicados de modo esquemático ou mecânico). Diria que esses princípios são o da defesa da vida (que não inclui apenas combater aborto e eutanásia, mas também os cuidados diante da pandemia e da fome, bem como a segurança pública); a opção preferencial pelos pobres, como caminho para se chegar ao bem comum; o fortalecimento das famílias (principalmente no plano socioeconômico, mas também no ideológico); a recusa à corrupção e a busca de justiça também na política.

 

As eleições deste ano correm o risco de intensificar ainda mais a polarização político-ideológica no Brasil. Como encarar esse processo com sobriedade?

Nosso grande desafio é a empatia com todos, conseguirmos entender suas motivações, seus problemas e seus ressentimentos. Temos que compreender que ninguém é perfeito ou infalível. Como lembra o Papa Francisco na Fratelli tutti, todos têm uma contribuição a dar (e ninguém pode se considerar sempre certo em todas as situações, acrescento eu). Ter consciência do próprio limite, ser capaz de olhar com ternura para as próprias insuficiências, é muito importante para adquirir a capacidade dessa empatia. Cito mais uma vez o Papa Francisco, que é um mestre particularmente importante nessa questão: é a consciência da misericórdia, do amor, que Deus tem por nós que nos permite reconhecer nossos próprios limites e olhar com ternura para os limites do outro, mesmo quando nos incomodam.

 

Como as comunidades, grupos e movimentos eclesiais podem contribuir para a superação desse quadro de polarização?

Creio que todos nós podemos adotar sete cuidados, ao enfrentar temas políticos entre nós:

  1. Estar sempre pronto a compreender as razões do outro, pois todos temos um desejo de bem no fundo de nosso coração. Quando compreendemos as razões pelas quais cada um chegou a uma determinada posição, torna-se muito mais fácil desenvolver o diálogo e chegar a uma posição consensual.
  2. Procurar não só os erros, mas principalmente os acertos que existem nos argumentos do outro –e aceitar quando ele está certo, mesmo que parcialmente.
  3. Nunca menosprezar o outro ou às pessoas que ele segue, mesmo que tenhamos concluído que seus argumentos são estúpidos. O menosprezo causa ressentimento e dificulta que tanto nós quanto os outros reconheçamos erros e acertos mútuos.
  4. Evitar difundir fake news. Normalmente uma busca rápida usando a ideia central com a palavra fake já direciona para um site confiável e especializado em checagem de informação. Os veículos de comunicação também erram, mas têm um nome a zelar e mecanismos de apuração interna que diminuem o risco de informações descabidas.
  5. Informar-se, procurando sempre o maior número de informações possíveis sobre a situação. É útil, inclusive, consultar bons sites com posições diferentes das nossas, para obter dados que normalmente não receberíamos.
  6. Não propagar discursos de ódio e raiva. Diante dos descalabros atuais, os comunicadores sociais aprenderam que quanto mais agressivos são, mais seguidores conseguem, mas essa prática acaba por ofender os demais e impedir que façamos uma análise serena e racional dos acontecimentos.
  7. Não ser insistente: se um grupo nas redes sociais pediu para não enviarmos mensagens com temas políticos ou polêmicos, se um amigo se recusa a continuar um diálogo ou se torna agressivo, é melhor respeitar o contexto. O diálogo deve ser feito entre os que estão dispostos a ele.

 

A Igreja sempre recomenda o diálogo como recurso para o debate político. O que fazer e o que não fazer para tornar o diálogo possível? E como se comportar com quem nega o diálogo?

A Igreja não colabora para o desenvolvimento da sociedade quando faz as pessoas tendencialmente à esquerda serem mais de esquerda ou as pessoas tendencialmente à direita serem mais a direita. Quem trabalha nessa perspectiva são os militantes partidários que querem convencer a comunidade católica a votar em seus candidatos. A grande contribuição da Igreja acontece quando ela nos ajuda a reconhecermos os erros da posição à qual tendemos e os acertos da posição contrária. Quando temos essa postura, conseguimos caminhar com muito mais facilidade para consensos que levem ao bem comum. É a dinâmica política que brota imediatamente de práticas tradicionais dos católicos, como o exame de consciência, a correção fraterna e a busca do entendimento entre os irmãos.

O desenvolvimento da sociedade depende muito de boas políticas de Estado, que são mantidas independentemente do partido que está no poder. A militância partidária, contudo, frequentemente aposta em políticas de governo, que só serão aplicadas enquanto seu governo está no poder e podem ser usadas para justificar o voto em seus candidatos. Para termos essas boas políticas de estado, é fundamental a formação de um consenso que supere diferenças ideológicas e programáticas. É aqui que essa contribuição da Igreja se torna mais evidente.

 

A relação política e religião é inevitável. O que você considera importante para que essa relação possa ser saudável?

A função primordial da política é a construção do bem comum e toda religião digna do nome está preocupada com o bem comum. A confluência entre política e religião será natural e harmônica enquanto mirarmos realmente o bem comum – e não o poder e os privilégios particulares. Nossos problemas começam a aparecer quando a política é utilizada buscando favorecimentos indevidos a grupos específicos e quando as religiões usufruem ou pedem privilégios e poderes que não lhes deviam caber. Políticos e religiões devem ter sempre em mente que existem para servir e não para disfrutarem de prerrogativas especiais.

Confrontos e choques de ideias são inevitáveis numa sociedade plural. É bom que aconteçam. Porém, devem estar sempre à construção do bem comum. Um argumento que constrói o bem comum não pode ser desqualificado apenas porque veio de uma fonte religiosa. Uma pessoa religiosa, por sua vez, ao expor seus argumentos, deve estar ciente que os demais podem não ter a mesma experiência nem a mesma visão de mundo que ele e, por isso, não concordarem por não entender plenamente. Assim, o diálogo exige uma posição de abertura para escutar, de uma parte, e atenção para utilizar argumentos compreensíveis, do outro.

Comentários

  • José E. Portella

    Excelente entrevista, obrigado prof. Borba, pela lucidez e ponderação sobre um tema que geralmente gera divisões.

  • Helena Corazza

    Muito boa entrevista e ponderações!