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“Para ser cristão, fuzil ou feijão?”

“Superação da fome, humanismo ou a arma? À qual realidade sentem mais compaixão? O que a Igreja, a Doutrina Social da Igreja e o magistério do papa Francisco orientam sobre este assunto?”, provocou dom Joaquim Mol

Há 3 anos - por Osnilda Lima
Da esquerda para direita: Professor Lobão, Dom Mol e Dom Luiz
Da esquerda para direita: Professor Lobão, Dom Mol e Dom Luiz (foto por Osnilda Lima)

No último dia 2 de setembro, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) realizou uma live com o tema: “Para ser cristão, fuzil ou feijão?”. A provocação se deu a partir do discurso armamentista do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) aos seus seguidores, no cercadinho, no último dia 27. Na ocasião, o presidente citou o pacote de decretos que flexibiliza aos colecionadores, atiradores e caçadores (CACs) a aquisição de armas e munições. “Sei que custa caro. Tem idiota, ‘ah, tem que comprar feijão’. Cara, se não quer comprar fuzil, não enche o saco de quem quer comprar”, declarou Bolsonaro.

Na live “Para ser cristão, fuzil ou feijão?”, participaram dom Luiz Fernando Lisboa, da Congregação da Paixão de Jesus Cristo (passionistas) e atual arcebispo de Cachoeiro de Itapemirim (ES). Dom Luiz foi bispo da diocese de Pemba, em Moçambique, uma nação do sul da África. Nesse país, ele vivenciou os impactos da guerra na vida de um povo. Também colaborou na reflexão Antônio Carlos de Azevedo Lobão, economista e professor da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Camp), que integra o Grupo de Análise de Conjuntura da CNBB. A mediação foi de dom Joaquim Giovani Mol Guimara~es, bispo-auxiliar de Belo Horizonte (MG) e presidente da Comissão Episcopal Pastoral para a Comunicação da CNBB.

 

Aproximadamente 116 milhões de pessoas passam por algum grau de insegurança alimentar. 9% passam por insegurança alimentar grave, isto é, passam fome.

 

Dom Mol iniciou convidando a escolher o melhor caminho. Trouxe dados sobre a fome no Brasil. São 19 milhões pessoas em situação de fome no país, de acordo com dados da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Penssan), em 2020. O estudo estima que 55,2% dos lares brasileiros, ou seja, aproximadamente 116 milhões de pessoas passam por algum grau de insegurança alimentar; 9% passam por insegurança alimentar grave, isto é, passam fome. Por outro lado, lembrou o bispo, em 2020, ocorreu alta na posse de armamentos. Houve um aumento de 97,1%, após a flexibilização de regras promovidas por Bolsonaro. Esses dados são do anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. A cada 100 pessoas, uma possui arma. E as vítimas? 78% são negras, de acordo com o Fórum.

“E os cristãos, e os católicos, neste momento, a que apelo eles aderem: feijão ou fuzil? Superação da fome, humanismo ou a arma? À qual realidade sentem mais compaixão? O que a Igreja, a Doutrina Social da Igreja e magistério do papa Francisco orientam sobre este assunto?”, provocou dom Mol.

 Um projeto liberal e outro pessoal, ambos violentos

“Na minha opinião, o que nos temos visto no Brasil, nos últimos anos, foi o desenvolvimento de dois projetos distintos, ambos autoritários, e ambos violentos”, enfatizou Antônio Carlos de Azevedo Lobão. Para o professor, de um lado há um projeto neoliberal de desmonte do estado, das politicas públicas, com o desmantelamento dos direitos sociais, duramente conquistadas com a constituição de 1998. Labão ressalta que esse é um projeto defendido pelas grandes cooperações e pelo mercado financeiro. Segundo ele, se ainda considerar as questões da geopolítica internacional, é um projeto ligado às corporações dos Estados Unidos, do governo norte-americano.

“Agora em paralelo a esse projeto, desenvolveu-se um projeto pessoal ou familiar de poder em torno da figura do presidente da república e de seus seguidores mais próximos. É um projeto também autoritário e violento”, ressaltou Lobão. Segundo o professor, é um projeto de controle e subordinação das instituições da república, sob a autoridade de um chefe supremo, como o próprio presidente, com frequência se autodenomina. 

Lobão recorda que, por um tempo, esses projetos caminharam juntos, mas que os laços estão se esgarçando, e talvez não resistam às eleições do ano que vem. “Certamente houve uma grande frustração com Bolsonaro, em setores muito importantes da economia, do mundo político e da sociedade que desembarcaram e outros vão desembarcar dessa aliança, por conta do desgaste do governo”, cogitou o professor.

 

“Uma vez que o governo vê fragilizando sua opção eleitoral, ele agora luta para subverter a ordem democrática e para isso ele precisa cada vez mais de seu núcleo duro. É nesse contexto que a gente deve entender esse discurso do fuzil como opção do feijão”, (Professor Antônio Carlos de Azevedo Lobão)

 

 

Para o professor, por parte do governo Bolsonaro e de seu núcleo duro, há o medo do diferente, o medo do outro e que passa a ser visto como inimigo ou uma ameaça e, que por isso deve ser exterminado. “Uma vez que o governo vê fragilizando sua opção eleitoral, ele agora luta para subverter a ordem democrática e, para isso, precisa cada vez mais de seu núcleo duro. É nesse contexto que a gente deve entender esse discurso do fuzil como opção do feijão”, indicou Lobão.

 “Por isso, em tempos sombrios a definição do que é certo do que é o bom, do que é justo se torna tão importante, a maioria das pessoas querem agir conforme a sua consciência, querem agir de acordo com aquilo que elas acreditam. Nós agimos de acordo com os nossos valores, as nossas crenças. São esses valores que nos permitem julgar. E essa talvez seja a decisiva batalha do nosso país. E a batalha que acontece nas mentes e nos corações dos cidadãos. O que estamos vendo é a tentativa de ressignificar o que é o certo, o que é o errado; o que é o bem, o que é mal; o que é justo, o que é injusto. E o grande risco é que quem convencer vai governar”, apontou Lobão.

 “Sejamos pessoas de paz!”

Dom Luiz Fernando Lisboa, chegou de Moçambique há cerca seis meses. Passou seus últimos 20 anos no país africano, onde vivenciou, com o povo, o drama das guerras e a fome que a população passa, muito embora sendo um país rico em gás, petróleo, pedras preciosas (como ouro e rubi) e outras semipreciosas.

O bispo relatou que, mesmo vivendo fora do Brasil, procurava acompanhar a realidade daqui, mas que, ao retornar, percebeu com tristeza a realidade que o país está passando, em especial, diante do retorno de milhares de brasileiros ao mapa da fome e o crescente discurso de ódio e armamentista.

A experiência em Moçambique foi traumática, conta dom Luiz, no sentido de que é um dos 10 países mais pobre do mundo. Nos últimos quatro anos, na região onde ele estava, norte de Moçambique, “a população está a enfrentar uma guerra, sem precedentes. O país já passou por outras guerras. Guerra contra os colonizadores, depois uma guerra civil que matou mais de um milhão de pessoas. E, agora, acontece uma guerra que tem como objetivo primeiro a ganância pelos recursos naturais que o país tem e que concretamente aquela região tem”, revelou.

O bipo lembrou que a guerra na região onde ele estava, na costa nordeste de Moçambique, já deixou mais de três mil mortos. Um cálculo aproximado, mas que pode ser bem maior. E mais de 800 mil deslocados. “A igreja lá tem procurado fazer sua parte no sentido de acolher essas pessoas deslocadas. A situação já era muito grave, sem a guerra, muitas pessoas passavam fome, mas com a guerra, tudo isso veio a piorar”, lamentou. Ele relembrou que é uma guerra sangrenta, de terrorismo. “Uma guerra onde muitos jovens foram cooptados, foram armados e sem ter nenhuma experiência, sem nenhum treinamento. Esses jovens sem perspectivas, na extrema pobreza, foram cooptados e começaram a matar seu próprio semelhante”, lastimou.

Sobre o discurso armamentista do governo Bolsonaro, dom Luiz afirmou: “Então, armar uma população, isso me assusta, quando eu volto pra cá e vejo o Brasil voltar ao mapa da fome, de onde já tinha praticamente saído, uma pobreza que tem aumentado. O aumento das pessoas em situação de rua, isso assusta”, enfatizou.

Ele lamentou o embate, a polarização, o incentivo à violência, a cultura do ódio crescente no Brasil, bem como o desrespeito e o incentivo a ataques as instituições democráticas. “Isso é triste, porque a nossa democracia é tão jovem, e ela precisa ser preservada, ela precisa ser defendida a todo o custo. Cabe a nós, como pessoas que têm fé, que acreditam, que somos cristãos, e mesmos os não cristãos, as pessoas de boa vontade, a defenderem a democracia”, conclamou o bispo. “Qualquer projeto de governo que fira a democracia não pode prosperar. Não é possível!”, sentenciou dom Luiz.

 

É necessário reconfigurarmos a nossa linguagem, é necessário olharmos mais para a figura de Jesus, olharmos mais para os ensinamentos do papa Francisco, não apenas o que ele tem falado e ensinado, mas do que ele tem feito” (Dom Luiz Fernando Lisboa)

 

 

“Nos entristece ver pessoas que rezam, que vão à igreja, que leem a escritura e que depois seguem ensinamentos ou propostas que vão radicalmente contra o evangelho. Contra aquela pessoa que nós seguimos, porque nós não seguimos uma doutrina. Nós seguimos uma pessoa, que é Jesus, que deu a vida para que todos tenham vida”, lembrou o prelado, que fez questão de trazer á memoria sobre o resultado da opção missionária de Jesus, “foi parar na cruz, como consequência das suas palavras, das suas atitudes, da sua proximidade com os mais pobres. Então, não é possível, que alguém que siga Jesus, que diz confiar nele, possa tornar-se violento, possa ser um promotor do ódio, da violência, do armamento. Não é possível aceitar isso. Vivemos num mudo que precisa cada vez mais de humanização, de humanidade”, alertou dom Luiz.

O bispo lembrou os últimos documentos do papa Francisco que convidam ao cuidado da Casa Comum, a alegria de viver e anunciar o evangelho de Jesus Cristo, o incentivo à cultura do encontro, o cuidado a atenção com as pessoas em situação de vulnerabilidade, o diálogo entre as religiões e o respeito ao diferente.

“É necessário reconfigurarmos a nossa linguagem, é necessário olharmos mais para a figura de Jesus, olharmos mais para os ensinamentos do papa Francisco, não apenas o que ele tem falado e ensinado, mas do que ele tem feito”, sugeriu dom Luiz.  

O prelado trouxe aos debates a proposta da Economia de Francisco e Clara, em que o papa critica o atual modelo econômico predador e sugere uma “economia socialmente justa, economicamente viável, ambientalmente sustentável e eticamente sustentável”. “Vamos abrir os olhos, os ouvidos, e o coração para ajudarmos a viver tempos novos”, pediu o bispo.

Por fim, ao se aproximar o Dia da Pátria, 7 de setembro, dom Luiz convocou “que não haja violência, que ninguém extrapole, que ninguém ultrapasse os limites, que não desrespeitemos a democracia, as instituições democráticas, o estado de direito. Que todos os cristãos possam ser pessoas de paz e não pessoas violentas, que levam a violência, que transmitem a violência, que respiram violência, isso está contra os ensinamentos de Jesus”.

Sugerimos à integra da live na nossa seção de vídeos

 

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