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Estamos de luto

O Brasil, que já foi o país do futuro, registra e consola suas 282 mil crianças e adolescentes órfãs pela Covid-19

Há 2 anos - por Karla Maria
Tatiana Marins de Araújo e o filho Arthur: dor pela perda do marido e pai José Henrique para a Covid-19
Tatiana Marins de Araújo e o filho Arthur: dor pela perda do marido e pai José Henrique para a Covid-19 (foto por Karla Maria)

Conheci Arthur na sala de sua casa no Jardim Ponte Alta, um bairro de Guarulhos que só recebeu o saneamento básico em 1991. A sala era amarela, com uma escada de aço no formato caracol e uma televisão exposta na parede, feito quadro em museu. Era ali, naquele espaço colorido e em cima de um tapete felpudo, que o menino de sete anos costumava rolar no chão com o pai, o bombeiro civil José Henrique Rodrigues, morto em 4 de janeiro de 2021 em decorrência da Covid-19.

O homem de riso fácil, assim contam, foi uma entre as cerca de 610 mil vítimas fatais do novo coronavírus, que acomete o país desde março de 2020. De certo modo, o bombeiro foi acometido também pelo negacionismo, já que a primeira recomendação médica que recebeu ao pedir socorro, na primeira semana de dezembro de 2020, foi a de tomar medicamentos. José Henrique foi atendido em um hospital privado conveniado da Intermédica, na zona leste de São Paulo.

“Não adiantou nada e nem sei se não piorou o quadro dele. Ele estava mal, com muita febre, e no hospital o mandaram voltar para casa e tomar aquele tal kit covid. Tinha azitromicina, dipirona e xarope. Ele tomou”, contou a viúva Tatiana Marins de Araújo, 42 anos, ainda inconformada com a morte do marido.

“Ele era muito saudável, trabalhador, feliz demais, apaixonado pelos filhos”, disse mostrando fotos da família no celular. Do primeiro casamento, José Henrique teve e deixou os filhos Amanda, Daniel, Juliana e Milena, todos adultos, além de três netos. De sua relação com Tatiana, o caçula Arthur. Uma família de são-paulinos de sorrisos largos. Ao menos, eram largos.

A conversa com Tatiana e Arthur foi carregada de angústia e boas lembranças. “Imagine que meu marido não podia fazer isolamento social. Era bombeiro civil. Precisava ir trabalhar, mas não recebia material de proteção. Ele foi exposto ao vírus. Colegas dele que estavam muito doentes no local de trabalho dividiam uma sala pequena com ele, sem ventilação, e todos ficavam sem máscaras”, denuncia.

 

“Não diga para uma criança que perdeu seu pai, mãe ou alguém que ama, que aquela pessoa está em um lugar melhor, ou que está bem, por exemplo, porque a criança vai entender literalmente tal afirmação e entender que foi deixada para trás. Ela pode se perguntar: como assim está melhor, mas sem mim?”. (Rosângela Marques, psicóloga)

 

Dez meses depois de sua morte, Tatiana questiona-se por que ele, com um atestado de 15 dias, tinha de entregar o documento pessoalmente à empresa. “Liguei na empresa e pedi o email para enviar o atestado, e a moça do RH exigiu que ele entregasse o atestado pessoalmente, e assim fomos”.

José Rodrigues estava entregando seu atestado quando passou mal e foi retirado da empresa na Barra Funda, zona oeste de São Paulo, de ambulância. Nunca mais voltou pra casa. Ele era funcionário do Grupo Haganá, uma empresa de segurança patrimonial e terceirização de serviços. Nossa reportagem questionou a empresa sobre as denúncias feitas pela viúva, mas até o fechamento desta reportagem não obteve retorno.

A internação aconteceu no dia 7de dezembro e seu pulmão, três dias depois, já havia sido comprometido em 70%. No dia 17 de dezembro, seu aniversário, foi intubado. Faleceu dia 4 de janeiro, aos 55 anos de idade.

“Meu pai não usava máscara, aí pegou Covid e faleceu. Eu falava pra ele usar máscara”, disse cortando o silêncio e o coração, com os olhos e dedos grudados no celular. Foi uma conversa difícil para todos os lados. Uma conversa que durou cerca de duas horas e revelou a insatisfação do pequeno com a realidade: amoroso com a mãe, Arthur falou do pai entre uma escalada e outra nos sofás da sala que para ele eram como montanhas. “Lembro quando eu subia nas costas dele e pulava, e quando reclamava do São Paulo”.

A saudade de Arthur se multiplica pelo país. Uma atualização do estudo Global minimum estimates of children affected by covid-19-associated orphanhood and deaths of caregivers: a modelling study, publicado na revista científica The Lancet em 12 de outubro de 2021, revela que, se consideradas as perdas de um dos pais, de ambos ou do responsável legal, como avó ou avô, o Brasil já tem 282 mil menores de 18 anos órfãos pela Covid-19. Já quando se leva em conta apenas a morte de um dos pais ou de ambos, essa estatística sobe de 130 mil (dado publicado em julho de 2021) para mais de 168 mil.

E os próprios pesquisadores alertam: a subnotificação é provável. Os cientistas calcularam mais de 862 mil crianças órfãs em 21 países, nos quais ocorreram cerca de 77% das mortes globais por Covid-19 até 30 de abril de 2021. Também estimaram que, em termos globais, mais de 1 milhão de menores perderam um dos pais ou seu principal cuidador, principalmente os avós, já que ainda segundo o mesmo estudo 38% das crianças do mundo vivem na mesma casa que os avós, porcentagem que chega a 50% na Ásia-Pacífico.

“Mais vulneráveis à Covid-19 são esses idosos que costumam dar apoio prático, financeiro ou emocional para seus netos”, destaca o estudo internacional. Outra pesquisa, realizada pela Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil) a partir do cruzamento de dados entre os CPFs dos pais e mães nos registros de nascimentos e de óbitos nos 7.645 Cartórios de Registro Civil do país, revelou que25,6% das crianças de até seis anos que perderam um dos pais na pandemia não tinham completado um ano. Já 18,2% tinham um ano de idade, 18,2% dois anos, 14,5% três anos, 11,4% quatro anos, 7,8% cinco anos e 2,5% seis anos. São Paulo, Goiás, Rio de Janeiro, Ceará e Paraná foram os Estados que mais registraram óbitos de pais e mães com filhos nessas idades.

“Crianças que perderam pais ou responsáveis na pandemia precisam de apoio governamental urgente ou enfrentarão danos no longo prazo”, apontou Seth Flaxman, pesquisador do Departamento de Matemática do Imperial College de Londres e de ciência da computação da Universidade de Oxford, no Reino Unido, um dos 16 autores do trabalho publicado na The Lancet.

O estudo descreve a partir de evidências de epidemias anteriores que respostas ineficazes a essas mortes, mesmo quando há um pai ou cuidador sobrevivente, podem levar a resultados neurocognitivos, socioeconômicos, psicossociais e biomédicos deletérios para as crianças.

Auxílio psicológico

Tatiana observou que o rendimento de Arthur caiu na escola, o que, segundo a psicóloga clínica Rosângela Marques, é bastante normal, assim como a falta de apetite, certa irritabilidade, mudanças no estado de humor, hiperativa ou ao contrário, apatia. “Observar e acompanhar estes sintomas de um estado de luto é importante, porque a partir dessa observação podemos definir se a criança está de luto ou em depressão. Importante destacar que nem todo luto gera depressão”.

O luto, vai lembrar a psicóloga, é algo natural, já a depressão não. “A diferença entre ambos é tênue. Enquanto a criança fica pensando na pessoa que perdeu, nos momentos que viviam juntas, isso é luto, mas quando começa a dizer assim ‘eu não sei o que vou fazer da minha vida, a vida não vale nada, quando a criança puxa o sentimento pra ela, aí, devemos ficar atentos, e é sempre importante buscar ajuda, apoio”.

Rosangela orienta que pais e mães, os responsáveis pela criança, conversem sobre tal perda, que contem a história da morte, desta partida definitiva de modo que a criança não sofra com esperas, expectativas e crie cenários impossíveis de serem concretizados. “Não diga para uma criança que perdeu seu pai, mãe ou alguém que ama, que aquela pessoa está em um lugar melhor, ou que está bem, por exemplo, porque a criança vai entender literalmente tal afirmação e entender que foi deixada para trás. Ela pode se perguntar: como assim está melhor, mas sem mim?”.

 

“Olha, temos um presidente que não está nem aí para o país e nossas famílias, ele se importa é com a família dele. O sentimento que tenho é de ódio: ‘uma’ pelo primeiro atendimento que ele recebeu com medicação que não resolve nada, depois pela falta de proteção pra trabalhar. Fico pensando: por que a vacina não chegou um pouco antes?” (Tatiana Marins de Araújo, viúva do bombeiro civil José Henrique Gonçalves, vítima fatal da Covid-19)

 

A psicóloga chama a atenção para o fato de que os adultos acabam por vezes subestimando a capacidade de entendimento de uma criança, e por isso não explicam, mas ressalta que é importante conversem e façam com que a criança entenda de modo geral o que aconteceu e o que virá depois. Ela precisa se sentir segura. “É importante localizar a criança dentro do espaço familiar e dizer: bom, agora somos nós aqui e vai ficar tudo bem”.

Para Maria das Graças Silva Gervásio, assistente social da equipe técnica da Coordenação Nacional da Pastoral da Criança, a Pastoral da Criança, que muitas vezes, é quem está mais presente junto à família pode colaborar nesta rede de apoio. “Assim, pode recorrer e mobilizar outras frentes na comunidade, tais como a ação social da paróquia, órgãos da prefeitura, através dos centros de assistência social, para ajudar essa família”.

Maria falou mais sobre a situação do país cujas crianças estão em luto, nestes tempos de pandemia no Programa de RádioViva a Vida da Pastoral (1550), disponível no site da Pastoral.  

Auxílio financeiro


Na casa de Arthur, tanto Tatiana quanto José Rodrigues trabalhavam para a manutenção das despesas com alimentação, vestuário, educação e lazer da família. Com a morte do pai, tudo ficou concentrado em Tatiana, que enfrenta desafios. “Seria muito importante pra gente receber esse apoio, auxiliaria nas despesas do Arthur”, conta Tatiana, desligada da empresa que trabalhava no início da pandemia.

No Maranhão foi aprovado por unanimidade pela Assembleia Legislativa, por meio da Lei n° 323/2021, o repasse de R$ 500 mensalmente até o alcance da maioridade civil (21 anos) às famílias cujas crianças ficaram órfãs. Tal iniciativa incentivou o programa Nordeste Acolhe, que fará o mesmo repasse por mês aos órfãos dos nove estados até os 18 anos de idade. Segundo o Consórcio Nordeste, a estimativa é que existem aproximadamente 26,5 mil órfãos em consequência da pandemia da Covid-19 nos nove estados que compõem a região.

No Piauí, as famílias carentes que perderam pais, mães e/ou responsáveis de crianças até 18 anos já podem se cadastrar para receber o valor. “Até agora avaliamos que cerca de mil crianças deverão receber esse valor, porque não dá para esperar a sanção do presidente, as pessoas têm fome”, disse a vice-governadora do Estado em entrevista à TV Cidade Verde.

A CPI da Covid, no Senado, cujo relatório final foi aprovado em outubro, recomendou a pensão de um salário mínimo a esses órfãos até que completem 18 anos. No entanto, é preciso aprovar uma lei em um cenário político-eleitoral conturbado.

“Olha, temos um presidente que não está nem aí para o país e nossas famílias, ele se importa é com a família dele. O sentimento que tenho é de ódio: ‘uma’ pelo primeiro atendimento que ele recebeu com medicação que não resolve nada, depois pela falta de proteção pra trabalhar. Fico pensando: por que a vacina não chegou um pouco antes?”, questiona a viúva Tatiana.

A pergunta e a indignação com a ineficiência e negligência do Estado diante das múltiplas consequências da pandemia de Covid-19 na vida dos brasileiros continua ressoando.

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