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534 novos agrotóxicos ameaçam a saúde dos brasileiros

“O Brasil impõe à sua população limites para resíduos tóxicos em alimentos que às vezes estão duas ou três vezes, e em alguns casos cem vezes, acima dos valores máximos permitidos na UE"

Há 2 anos - por Karla Maria
Janeiro é o mês dedicado ao controle da poluição por agrotóxicos
Janeiro é o mês dedicado ao controle da poluição por agrotóxicos (foto por Campanha Permanente contra os Agrotóxicos pela Vida)

Lembro-me do dia do diagnóstico e da orientação: você tem uma neoplasia, ou seja, células pré-cancerígenas, portanto, procure viver de modo saudável: pratique exercícios, exercite sua fé, seja feliz, alimente-se bem. Essa conversa tem alguns anos e, desde então, a tentativa diária é a de colocar em prática cada uma das prescrições do médico, como a aluna que busca a melhor nota.

Mas uma, entre as tantas orientações, me desafia além de meus esforços: alimente-se bem. O trabalhador brasileiro come mal, e não porque ele apenas prefere produtos industrializados, mas porque lhe é oferecido veneno na forma de agrotóxicos. E quem atesta é o próprio Ministério da Agricultura, em seu Programa Nacional de Controle de Resíduos e Contaminantes em alimentos (PNCRC).

Publicada em 17 de novembro de 2021, a portaria do Ministério da Agricultura SDA 448   apresentou dados assustadores sobre a presença de metais pesados, micotoxinas, MDT (Morfolina, Dietanolamina e Trietanolamina), salmonela e resíduos de agrotóxicos em uma ampla gama de alimentos consumidos diariamente.

Anote aí: abacaxi, alface, alho, amêndoa, amêndoa de cacau, amendoim, arroz, avelã, banana, batata, beterraba, café, castanha de caju, castanha do Brasil, cebola, cenoura, cevada malteada, cítricos, farinha de trigo, feijão, goiaba, kiwi, maçã, mamão, manga, melão, milho, morango, pera, pimenta do reino, pimentão, soja, tomate, trigo e uva.

Os agrotóxicos são produtos químicos sintéticos usados para matar insetos, larvas, fungos e carrapatos sob a justificativa de controlar as doenças provocadas por esses vetores e de regular o crescimento da vegetação, tanto no ambiente rural quanto urbano, e, por isso, muito utilizados na cadeia produtiva do agronegócio.

Técnico em agroecologia Francisco Gomes: monoculturas tendem a usar agrotóxico em larga escala (Arquivo pessoal)

 

"O Brasil impõe à sua população limites para resíduos tóxicos em alimentos que às vezes estão duas ou três vezes, e em alguns casos cem vezes, acima dos valores máximos permitidos na UE", diz o estudo Pestizidatlas 2022, apresentado em 12 de janeiro último em Berlim pela Fundação Heinrich Böll.

Não por acaso em janeiro. Este é um mês dedicado ao Controle da Poluição por Agrotóxicos. O técnico em agroecologia Francesco da Silva Gomes vive no Acre e de lá ele representa a Pastoral da Juventude Rural (PJR), que se vê em campanha permanente contra o uso do agrotóxico.Gomes alerta: “vem crescendo nos últimos anos, e cada vez mais, o uso de agrotóxicos em fazendas por vaporização aérea e também por meio de borrifar a plantação com bombas”.

Diz ainda Gomes: “Represento a PJR da Região Norte em assentamentos e pequenas propriedades incentivando técnicas da agroecologia. Quando aparecem essas propagandas de que o agro é pop, do agronegócio, é porque usam os agrotóxicos em monoculturas, uma cultura só, que é diferente da agricultura familiar. Os agricultores que usam agrotóxico em larga escala o fazem para cada vez produzir mais, mas são voltados apenas para a monocultura”.

A análise do técnico é refletida na pesquisa Pestizidatlas 2022, que detalha que "no Brasil, o uso de herbicidas (especialmente o glifosato) triplicou no cultivo de soja entre 2002 e 2012, chegando a até 230 mil toneladas por ano. Mas, apesar do aumento na quantidade de agrotóxico aplicado, os rendimentos por hectare aumentaram apenas cerca de 10%".

Estudos recentes revelam que 385 milhões de pessoas envolvidas com agricultura desenvolvem intoxicação aguda por pesticidas todos os anos. Os trabalhadores rurais e agricultores sentem-se fracos após o envenenamento, têm dores de cabeça, vômitos, diarreia, erupções cutâneas, distúrbios no sistema nervoso e desmaios. Em casos graves, o coração, os pulmões e os rins são severamente afetados.

A agricultora Elena Lugaresi da Rosa, de 57 anos, conhece alguns desses sintomas. De acordo com a reportagem do colega Igor Carvalho, do Brasil de Fato, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), de Florianópolis (SC), reconheceu, em abril de 2021, que a produtora rural desenvolveu um linfoma não-Hodgkin (LNH) a partir do contato com agrotóxicos que utilizava em sua produção de milho.

O linfoma não-Hodgkin é um tipo de câncer que tem origem nas células do sistema linfático e que se espalha de maneira não ordenada. “A confirmação da existência da moléstia incapacitante referida na exordial (linfoma não-Hodgkin, grandes células, folicular), corroborada pela documentação clínica que preconiza a não exposição da segurada a agrotóxicos, potencialmente cancerígenos, associada às suas condições pessoais, demonstra a efetiva incapacidade para o exercício da atividade profissional, o que enseja, indubitavelmente, a concessão de auxílio por incapacidade temporária”, determinou o desembargador Paulo Afonso Bru Vaz em sua decisão em favor de Elena.

Por mais de vinte anos a agricultora utilizou o glifosato em sua produção de milho com o apoio de um pulverizador costal no formato de uma mochila. “Por mais que use alguma proteção, a gente sempre respirava aquilo. Na época de passar na plantação o cheiro era terrível. Então começaram a surgir manchas na pele e eu sentia muita dor no corpo: era o câncer”, disse a agricultora.

Elena foi tratada até junho de 2029 pelo no Sistema Único de Saúde (SUS) com quimioterapia e está curada.  “Hoje, eu estou muito bem, recuperada do câncer e sem sinais de que vá voltar, graças a Deus. Essa aposentadoria tem me ajudado demais, agora planto minha horta aqui no fundo de casa, onde tem o suficiente para a minha alimentação”, disse Elena, que não usa mais agrotóxicos na produção para seu consumo próprio. “Esse veneno quase me matou”.

Desde abril do ano passado a moradora de Palmitos (SC) recebe R$ 1.100 de aposentadoria, além de uma indenização retroativa a março de 2015, período em que desenvolveu o câncer.

Um país envenenado e desinformado

No Brasil, as intoxicações por agrotóxicos ocupam o segundo lugar entre aquelas consideradas exógenas. Segundo o Sistema Nacional de Informações Toxicológicas (Sinitox), entre 2006 e 2010 cerca de 73% dos casos de intoxicação por agrotóxicos envolveram o grupo dos inseticidas organofosforados, piretroides e carbamatos.

Os principais tipos de agrotóxicos são inseticidas (usados para controlar os insetos e pragas das plantações), herbicidas (utilizados para matar as plantas que são consideradas danosas para as plantações), fumigantes (no controle das bactérias do solo), fungicidas (no controle de fungos que crescem em locais de plantio), acaricidas (usados para controlar os ácaros), nematicidas (no controle denematoides) e formicidas (no combate às formigas).

O uso é disseminado e as intoxicações são subnotificadas, já que grande parte das pessoas que são contaminadas por agrotóxicos terminam fazendo o tratamento sem procurar cuidado médico e, portanto, sem notificar as autoridades sanitárias.

Em seu site, o Sinitox alerta que não há um decréscimo nos números de desintoxicação no país, e sim uma diminuição da participação dos Centros de Informação e Assistência Tecnológica nos levantamentos de intoxicação, o que nos leva a refletir sobre uma prática bastante recorrente neste governo federal: inexistência e/ou omissão de dados que destrincham a realidade do país e consequentemente políticas públicas que correspondam às demandas da população brasileira, em especial no que diz respeito a temas sanitários . Foi e tem sido assim com a vacinação e os testes de covid-19.

Elenas pelo país

Ao que parece, outras Elenas devem despontar pelo país, já que o uso de agrotóxicos é indiscriminado e tem o apoio de congressistas e do próprio governo federal, que em outubro de 2021 publicou o decreto 10.833 , que altera as regras sobre produção, pesquisa, registro, utilização, importação e exportação de agrotóxicos no país.

Para o governo de Bolsonaro, “os principais objetivos são reformular o processo de análise de registros, facilitar a pesquisa com agrotóxicos para viabilizar inovações tecnológicas e implementar ações para proteger os aplicadores de agrotóxicos”. Para cientistas e sociedade civil, trata-se de um crime contra o povo brasileiro.

“A mesma ganância que promove a violência no campo e a destruição do meio ambiente também envenena e mata. Seguimos ‘engolindo’ substâncias nocivas à saúde humana e planetária”, manifestou a Comissão Pastoral da Terra (CPT) em seu balanço Questão Agrária no Brasil – 2021, em janeiro deste ano.

“De janeiro a dezembro de 2021 foram liberados 534 agrotóxicos (publicados no Diário Oficial da União – DOU) contra 493 em 2020. O número configura um novo recorde, com volume de aprovação 14% superior no intervalo de um ano. Assim, nos três anos do governo Bolsonaro foram liberados 1.445 novos registros. Seja através dos alimentos ou das águas, o capital segue provocando um genocídio coletivo”, denuncia a CPT.

Não bastasse tal realidade, tramita no Congresso Nacional o chamado “Pacote do Veneno” (projeto de lei 6.299/02) que pretende flexibilizar ainda mais o uso de agrotóxicos no país. “Para mim, há um total descaso com o meio ambiente, porque a bancada que ‘apoia’ ele na Câmara é a ruralista, são os plantadores de soja, de milho, da monocultura. São eles que fazem isso. Se esses projetos de lei forem aprovados, será uma maravilha para eles”, disse o técnico em agroecologia Francesco da Silva Gomes. Para ele, uma produção mais limpa e ética é também compromisso cristão. “O papa Francisco fala muito em casa comum, ou seja, que a gente cuide para ter no futuro. Pra gente ter uma saúde boa temosde cuidar da Casa Comum, do planeta em que a gente vive”.

 

Tânia Leite, do assentamento de Santa Maria, em Paranacity (PR): exemplo de agroecologia (Facebook)

 

Saídas éticas, doces e sustentáveis
Pensando nos riscos que o consumo de alimentos com agrotóxicos oferece à saúde e ao meio ambiente, foram desenvolvidos modelos de produção agrícola que dispensam o uso de aditivos químicos e valorizam o processo de produção orgânica. É o caso da agroecologia.

Nela,a produção agrícola se preocupa em manter a produtividade do solo em longo prazo utilizando compostagem, defensivos naturais, rotação das culturas e diversidade no plantio. É o que Tania Leite faz no assentamento Santa Maria, em Paranacity, no noroeste do Paraná.

“Nós vivemos de forma coletiva. Somos 22 famílias que produzimos orgânicos. Temos produção de cana e derivados, leite e derivados, tudo orgânico e agroecológico”, disse a dona de um sorriso largo e orgulhoso antes de apresentar a receita de um docinho de gergelim em vídeo para a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, fruto do trabalho coletivo e consciente da Cooperativa de Produção Agropecuária Vitória (Copavi), que integra o trabalho e a gestão das famílias camponesas e que segue há 28 anos semeando autogestão, cooperação e agroecologia com o objetivo de colher reforma agrária, justiça social e saúde para os que plantam e àqueles que se alimentam.

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