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Uma abordagem transcendental do movimento modernista brasileiro

Movimento cultural brasileiro, cujo momento marcante foi a Semana de Arte Moderna de 1922, possui da parte de alguns de seus protagonistas uma perspectiva religiosa (notadamente cristã) no seu sentido mais profundo

Há 2 anos - por Luís Henrique Marques
A Semana de Arte de 1922 foi um dos principais eventos do movimento modernista no Brasil
A Semana de Arte de 1922 foi um dos principais eventos do movimento modernista no Brasil (foto por Guia das Artes)

Em linhas muito gerais, é possível dizer que o movimento modernista brasileiro deflagrado no início da década de 1920 conjugava a crítica à chamada arte burguesa, acrítica e elitista, ao beber na fonte de movimentos artísticos de vanguarda europeus, com a crítica à realidade cultural, social, político e econômico do nosso país naquele momento, marcada pelo colonialismo, injustiça social e preconceito contra a chamada cultura popular. Pintores, escultores, músicos, escritores, entre outros artistas, além de intelectuais brasileiros, se uniram nesse movimento de ampla libertação estética e cultural. A Semana de Arte Moderna realizada no período de 13 a 18 de fevereiro de 1922, cujo centenário está sendo comemorado este ano, é um dos principais marcos desse movimento que se seguiu por alguns anos.

Muitos dos protagonistas do movimento modernista são conhecidos não só por sua obra, mas por seu posicionamento crítico, quando não irreverente. O que talvez muita gente não saiba é que, entre eles, há aqueles fundamentavam seu pensamento em valores da fé, especialmente cristã e católica. Isso soa até exótico, porque parte do objeto da crítica dos modernistas à sociedade conservadora era a própria religião institucionalizada, em especial, a Igreja Católica, cujo pensamento e postura estavam entre os fundamentos da cultura dominante daquele período no Brasil.

No entanto, pesquisadores e estudiosos do modernismo brasileiro e, em particular dos principais atores da Semana de Arte de 22, reconhecem tendências, traços e até posturas bastante claras de um pensamento modernista que não prescinde da própria fé e religiosidade, mas encontra convergências de uma religiosidade essencial com muitas das ideias modernistas.

Na edição desta semana, o Jornal O São Paulo, da Arquidiocese de São Paulo, publicou um longo artigo em que são apresentadas características do pensamento de importantes personagens da Semana de Arte Moderna de 22 que trazem essa perspectiva da fé, seja de forma explicitamente religiosa, seja por meio de uma inspiração humanista de clara coerência com os valores do Evangelho. Anita Mafaldi, Victor Brecheret, Cândido Portinari, Cláudio Pastro são alguns dos artistas citados pelo texto. Entre eles, há ainda Mario de Andrade sobre quem de maneira particular trataremos na parte final desta matéria. Assinado por Ira Romão, o artigo é intitulado “A temática cristã das obras dos artistas da Semana de 22” e se fundamenta em estudos da pesquisadora em artes visuais, Karin Philippov, pós-doutoranda na Universidade Estadual Paulista (Unesp). Confira: https://osaopaulo.org.br/destaque/a-tematica-crista-nas-obras-dos-artistas-da-semana-de-22/

A historiadora Luciana Lilian de Miranda também chegou a se debruçar sobre essa temática. Em seu trabalho intitulado “Intelectuais e modernismo brasileiro: nos rastros do Grupo Festa, anos de 1920”, apresentado na 29ª edição do Simpósio Nacional de História, Luciana de Miranda descreve, ainda que brevemente, algumas características fundamentais de um grupo que se colocou na contramão do movimento vanguardista e em defesa da fé católica. Trata-se de um grupo formado fundamentalmente por escritores de projeção daquele período e que, em alguns casos e ainda que em meio a divergências, se identificou com o próprio movimento modernista brasileiro. Jackson de Figueiredo, Tristão de Ataíde, Plínio Salgado, Cassiano Ricardo e Monteiro Lobato estão entre os principais nomes desse grupo, nomeado pela historiadora como “corrente espiritualista”.

“Os espiritualistas almejavam compreender a modernidade e indagar sobre o destino do homem, sem romper completamente com o passado”, afirma Miranda. “Em contraste com as correntes vanguardistas da época, os escritores da vertente espiritualista deixaram o seu legado pelas reflexões e poesia imbuídas de elementos espirituais ancorados nos valores do catolicismo”, completa a pesquisadora. O grupo, bastante heterogêneo, chegou a publicar a Revista Festa entre os períodos de 1927 e 1928 e 1934-1935, discutindo temas como espiritualismo/catolicismo, modernismo, música, nacionalismo, universalismo/totalismo, linguagem e ritmo.  Além disso, segundo Luciana de Miranda, “o grupo espiritualista firmou-se no meio literário carioca pela poesia”, sempre fundamentada em valores claramente católicos.

 

 

Mário de Andrade: perspectiva transcendtal da arte e do ser artista (Imagem: Wikipédia)

 

Mário de Andrade

 

O escritor e poeta paulista Mário de Andrade é um caso singular dentre os modernistas, sobretudo os principais protagonistas da Semana de Arte de 22, cujo pensamento revela claros valores de sua fé católica para além das manifestações explícitas da devoção religiosa. Quem compartilha dessa leitura sobre Mário de Andrade é o artista plástico Luciano Sepúlveda de Souza, de Belo Horizonte. Em conversa com a nossa reportagem, ele apresentou uma breve reflexão sobre essa leitura a respeito da obra de Mário de Andrade, fundamentando-se no livro “Mário Vário: uma introdução ao pensamento de Mário de Andrade”, do filósofo Luciano Costa Santos (Editora Unijuí, 2005).

Para Luciano Sepúlveda, o autor dessa obra foi capaz, de alguma forma, captar a “alma” de Mário de Andrade, reconhecidamente católico, mas que, certamente, não tinha uma posição ortodoxa em relação à fé e à Igreja no Brasil daquele período. Essa alma se revela bastante sensível à humanidade, inclusive ao seu sofrimento. Nesse sentido específico, o poeta modernista não vê o fim da dor como condição para a felicidade, mas que é possível ao ser humano ser feliz, mesmo tendo que conviver com o sofrimento. “É como integrar a dor a um projeto de vida mais amplo”, o que para Sepúlveda é uma perspectiva bastante cristã.

Aliás, essa “alma brasileira” só será uma realidade quando houver outro tipo de integração, de caráter nacional, entre as culturas regionais, quando os “bairrismos” forem superados. Essa integração (uma unidade na diversidade) deve ser também social, acrescenta Sepúlveda. Abordagem que corresponde à dimensão humana, social e comunitária do pensamento de Mário de Andrade.

Ele via essa perspectiva também como superação ao pensamento individualista burguês, em particular, ao culto ao ego e à vaidade pessoal, bastante presente no meio artístico. “Ele era contra essa ideia romântica do artista que se via como um ser especial”. Ao contrário, para Mário de Andrade, o artista deveria ser uma pessoa engajada profundamente na vida da sociedade, cuja missão, no caso brasileiro, era o de resgatar o valor da cultura e a identidade nacionais, que contemplassem o povo como um todo, não apenas as classes mais abastadas, assim como não fosse expressão de uma visão nacionalista. O escritor, inclusive, viajou o país para estudar as diferentes expressões e tradições culturais do País em busca de compreender, mediante o diálogo com os artistas populares e as pessoas em geral, essa “alma brasileira”, explica Luciano Sepúlveda.

Ainda no âmbito das relações, para Mário de Andrade, outro diálogo importante a ser construído para o bem da identidade brasileira deve se dar entre a cultura popular, a cultura erudita e as expressões modernistas ou de vanguarda. Uma postura, portanto, equilibrada.

Sempre se fundamentando na leitura de “Mário Vário”, Luciano Sepúlveda chama a atenção para o fato de que o poeta e escritor modernista, por valorizar a dimensão relacional da vida (e, desse modo, de doação ao outro), tem aí outro aspecto de identidade essencialmente cristã, cuja doutrina valoriza a vida comunitária como elemento fundamental na construção da identidade da pessoa. “O ser artista tem tudo a ver com o ser em comunidade, com o doar-se ao outro”, afirma o entrevistado. Para ele, Mário de Andrade encontrou o sentido na sua vocação como escritor e poeta especialmente nessa relação com o mais autêntico povo brasileiro e não numa postura de quem se fecha no próprio mundinho ou que, no caso da artista, limita a sua produção a um meio para simplesmente se exibir.

Nesse sentido, para o escritor, a relação do artista com aquilo que usa para elaborar a sua arte (sejam os materiais concretos, sejam as palavras) tem como fim a valorização da arte em si e não da pessoa do artista. Trata-se de elevar algo maior, como a beleza ou a própria cultura. Ainda que a arte também projete o artista, essa não deveria ser a prioridade do fazer artístico. Essa perspectiva permite a quem estuda o pensamento de Mário de Andrade perceber uma dimensão transcendental na sua visão da arte no sentido em que ela vai além do próprio artista e sua obra para evocar valores mais profundos.

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