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Longe das manchetes, Petrópolis segue vivendo suas próprias cenas de guerra

232 mortos, 1.117 pessoas em abrigos, a negligência do Estado e um exército do bem sob as bênçãos de Santo Antonio, ali mesmo, no alto da Serra

Há 2 anos - por Karla Maria
Deslizamento de terra em Petrópolis, em função da chuva pesada do último dia 15 de fevereiro: tragédia abriu espaço para solidariedade
Deslizamento de terra em Petrópolis, em função da chuva pesada do último dia 15 de fevereiro: tragédia abriu espaço para solidariedade (foto por Guto Godoy)

Gizela Carminate andava por entre os escombros de um cenário de guerra. Olhar perdido, calças arregaçadas e nas mãos uma enxada que brigava com a grossa camada de lama na esperança de encontrar ali, debaixo de todo o caos, sua filha, seu sobrinho, sua família. Não era uma cidade da Ucrânia, do Iêmen, da Síria ou da Somália. Podia ser Franco da Rocha em São Paulo, em nosso país, mas era Petrópolis, na região serrana do Rio de Janeiro.

Era dia 15 de fevereiro deste 2022 e o desabamento de morros e vidas no Rio foi decorrente de seis horas de chuva intensa, a mesma quantidade esperada para um mês, segundo os meteorologistas. Chuva inédita em volume, mas desastre bem familiar.

Em 2011, na maior catástrofe climática do país, segundo o Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos (CPTEC), 73 pessoas morreram em Petrópolis. Cidades vizinhas, como Nova Friburgo, foram mais afetadas pelas chuvas, que deixaram 918 mortes em toda a região serrana. Já em 1988 foram 134 mortos após outro temporal. A contagem era, até então, a pior já registrada pela prefeitura.

Segundo reportagem do UOL, desde 2017, a prefeitura de Petrópolis tinha conhecimento e localização de 15 mil imóveis em risco e, mesmo com um relatório produzido há quatro anos, a administração reservou em 2021 mais recursos para gastar com luzes de Natal e publicidade do que com contenção de encostas.

Até o fechamento desta reportagem, a Polícia Civil informou que o desabamento de 15 de fevereiro levou a 232 mortos, sendo 138 mulheres, 94 homens e 44 crianças e/ou adolescentes. A filha e o sobrinho de Gizela estão entre as estatísticas.

“A intensidade dessas chuvas representa um problema em qualquer lugar. No entanto, a cidade não estava preparada para enfrentar mais essa chuva. Os bombeiros e a Defesa Civil do Estado e da cidade estão fazendo um grande sacrifício para socorrer as vítimas, enquanto os administradores culpam a chuva, como sempre. Na verdade, regredimos muito em gerenciamento de riscos nos últimos anos, e a população acaba sendo vista como a culpada de suas próprias tragédias”, lamentou o professor Jefferson Picanço, do Instituto de Geociências da Unicamp. Picanço é também membro do Centro de Apoio Científico em Desastres (Cenacid).

Levantamento realizado pela Agência Brasil apontou que 1.117 pessoas estão em abrigos espalhados por escolas públicas e locais estruturados de forma voluntária pelas comunidades, igrejas, organizações não governamentais (ONGs) e entidades. E ali, na Paróquia Santo Antonio, uma igreja bonita, pintada de azul e branco no Alto da Serra, ainda hoje, cerca de 50 pessoas estão abrigadas no salão paroquial e em salas antes destinadas para a catequese.

 

Paróquia Santo Antônio, a exemplo de outras comunidades eclesiais, se mobilizou para atender as pessoas atingidas pela tragédia de Petrópolis (Foto: Padre Moisés Fragoso)

 

Naquela paróquia, a dinâmica das últimas semanas, desde o mais recente desastre, tomou proporções imensas, em que socorro material e espiritual foram oferecidos a partir de um mutirão do bem que envolveu leigos, seminaristas, um tanto de resiliência e fé.

Por telefone, nossa reportagem conversou com padre Moisés Fragoso, vigário daquela comunidade paroquial, que recordou o momento da tragédia. “Às 18h30 fui arrumar as coisas pra missa, porque embora não tivesse quase ninguém por conta da forte chuva, nós íamos rezar”, disse o padre. E, por volta das 18h45, os fiéis que estavam na porta da igreja começaram a gritar. “Gritavam: meu Deus, meu Deus, morreu todo mundo. Gritavam de modo repetido e começaram a chorar. Eu fui pela porta pra ver o que tinha acontecido e aquela barreira grande estava descendo. Não tinha descido ainda, mas estava descendo, e vimos acertar aquelas cerca de sessenta casas”.

Sessenta casas, centenas de pessoas, gente dali da comunidade, vizinha, atuante, gente amiga e amada. “Infelizmente, perdemos muitos paroquianos nessas chuvas. Pessoas ligadas à pastoral da caridade, da pessoa idosa, as que ajudavam os jovens. Muitas pessoas faleceram”, disse o sacerdote de 35 anos que, ainda seminarista, já passara por tragédias semelhantes.

O padre falou do senhor Célio, do professor Nilson, de uma senhora da caridade, do jovem casal Sara e Bernardo, que diariamente estavam ali na comunidade. E falava com carinho, lamento. Ele acredita que a comunidade paroquial diminua consideravelmente, porque, além das mortes, muitos que perderam suas casas estão buscando um novo lugar em outras cidades.

Na fatídica noite, padre Moisés recebia a visita do artista sacro Guto Godoy, que ali estava para conhecer a paróquia, suas estruturas, e nela deixar seus traços de beleza a partir do sagrado. E, de certo modo, deixou. Em entrevista à reportagem, Godoy ressaltou que antes de ver o volume de terra e/ou lama avançar sobre as casas, sentiu o cheiro da própria terra invadir seus pulmões, mesmo ali, de dentro da igreja.

“Nenhum de nós dois tínhamos entendido o que tinha acontecido até que fomos até a porta da igreja e vimos. Um cenário desolador, uma mancha de terra da encosta que tinha caído e sinais de onde tinha parede, casas, só sinais. Não dava pra reconhecer nada. Estava começando a entardecer; então, foi uma cena extremamente chocante, e eu agora falando me lembro novamente do cheiro de terra, um cheiro muito forte”, recordou o artista.

Sua primeira reação foi medo e, imediatamente depois, ação humanitária. “Eu lembro que olhei para o padre Moisés e ele estava com aquele gesto de incredulidade, as mãos na cabeça, e aí ele começa a receber ligações e dizer ‘olha, a paróquia vai estar aberta pra receber as pessoas’”. Desde então, a paróquia nunca mais fechou.

Godoy trocou suas ferramentas usuais, tintas e pincéis, e se juntou à comunidade paroquial para tentar de algum modo reparar aquilo que fora destruído. “Naquele momento, e nos dias posteriores, foi uma questão de dar o apoio necessário naquilo que era possível. A paróquia já tinha se organizado. Na mesma noite, chegaram muitas pessoas, principalmente aquelas em situação de rua, porque foram diversos focos de desabamento, não foi só no morro. A cidade de Petrópolis toda desabou. Era cenário de guerra total sem marcas de tiros. Era água e barro, montes de terra espalhados pela cidade, carros batidos em árvores, retorcidos, muito lixo que se espalhou, muita pedra, muros que caíram. Foi um cenário desolador. De fato, algo que eu nunca achei que fosse ver na minha vida”, lamentou o artista.

Ajuda material e psicológica

 

A ajuda material tem chegado de todos os lados (Foto: padre Moisés Fragoso)

 

O apoio oferecido às vítimas do desabamento não foi só material, de subsistência, mas também de amparo à saúde mental, à alma. “Na quarta-feira, houve uma mobilização de psicólogos, psiquiatras e psicopedagogos voluntários para atender essas pessoas. Foi um movimento gigante”, disse o padre, lembrando também da presença organizada de seus colegas padres e dos seminaristas da diocese.

“Nós paramos todas as atividades [acadêmicas], todo o curso, e eles foram para as paróquias. Carregaram e descarregam caminhões, estavam ali para atender as pessoas. Foi realmente um trabalho fabuloso, mas não é um trabalho pontual, porque nós temos essa prática histórica na diocese, de educar um jovem padre para sentir a realidade de seu rebanho. Então, a atuação dos nossos seminaristas foi fabulosa. Trabalharam horas seguidas nos mais diferentes locais. Foram uma presença cristã que acolhe, que acompanha, que alimenta as pessoas também. Que dá um braço para dizer ‘nós estamos aqui, podem contar conosco’”, disse dom Gregório Paixão, bispo da Diocese de Petrópolis, que assim como seus jovens visita, desde o dia 15 de fevereiro, diariamente as comunidades atingidas pelos desabamentos e alagamentos.

Entre as preocupações do bispo e seu clero está o amparo daqueles que sofrem com a morte dos entes queridos e também com o desaparecimento dos corpos por entre os escombros. “Nós temos uma necessidade natural de fazer uma despedida, de concluir uma etapa da nossa história pra começar outra. Este é um momento trágico que gera muitas lágrimas para todos nós. Então a busca dessas pessoas, psicologicamente para os pais, filhos, netos, parentes e vizinhos, é para que eles possam seguir. Nós precisamos dessa despedida. Faz parte da dignidade humana, temos o direito de enterrar nossos mortos com dignidade”, pontuou dom Gregório à reportagem por telefone.

Na região da Igreja Santo Antonio, todos os corpos das vítimas fatais foram localizados, mas até o fechamento desta matéria cinco pessoas permaneciam desaparecidas na cidade. Segundo o Corpo de Bombeiros, as buscas seguiam na Chácara Flora e ao longo dos rios e afluentes que passam por Petrópolis e seguem até a cidade de Três Rios. Ainda segundo a corporação, a busca conta com mergulhadores e equipes terrestres com cães de busca e salvamento e apoio de maquinários.

A despedida

Iniciei esta reportagem escrevendo sobre Gizela Carminate, que procurava sua filha Maria Eduarda, de 17 anos, sob a lama. A cena de uma busca pelas próprias mãos rodou o Brasil e certamente entrará para a história como demonstração de uma nação incapaz de garantir moradia em segurança para os seus, um tema que apontaremos a seguir.

A partir da imagem de Gizela, uma mãe que chora a morte de sua filha, esta reportagem buscou entender como é possível viver o luto diante de uma morte trágica e inesperada. Um estudo sobre luto parental em situações de morte inesperada realizado pela Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa, que contou com uma amostra de oito pessoas (seis mães e dois pais) que perderam filhos por suicídio, afogamento ou acidente de trânsito, aponta que as circunstâncias da morte parecem interferir na intensidade e a duração dos sintomas de luto e com o processo de adaptação à perda.

“Quando os filhos morrem, os pais podem sentir que essa imortalidade – os filhos assumem grande importância simbólica em termos de esperança para o futuro dos pais – foi adulterada, que o seu futuro foi interrompido ou roubado e os sonhos podem morrer. Essa morte do futuro parece essencial para a intensidade das respostas de muitos pais”, avaliou Jacinta Tânia Teixeira Gonçalves, responsável pelo estudo.

E o que dizer para os que sofrem pela partida inesperada? A psicoterapeuta Maria Helena Pereira Franco, coordenadora do Laboratório de Estudos e Intervenção sobre Luto da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), ensina: “Ajuda muito esse amigo revelar que não sabe o que dizer, que sofre também em ver o amigo passar por essa perda e que gostaria de ter o poder de amenizar a dor do luto. Eu digo sempre que nós temos dois ouvidos e uma boca, deve ter uma razão mais do que anatômica”.

Padre Moisés Fragoso não conhece e tampouco consultou a psicoterapeuta, mas parece estar seguindo o conselho. Busca ser presença amiga, atenta, amorosa. “Às vezes, e te digo pela minha experiência com alguns aqui, você não tem o que falar, porém pode ficar perto da pessoa, ser companhia. A companhia fala muito mais do que uma ou várias palavras”.

E agora? Cobrar e trabalhar...

A Diocese de Petrópolis, que participa de um gabinete central e cobra ações efetivas das autoridades públicas, resgatou o Projeto Presença Samaritana, uma estrutura criada em 2011 para assistir as pessoas vitimadas por tragédias. O telefone de contato para doações é (024) 98828-0211. “Essa Presença Samaritana está responsável por cuidar desse pós-[tragédias], porque nós sabemos que a política pública daqui a pouco vai esquecer essas pessoas. Vai ficar com aluguel social por um período, sabe-se lá quanto, mas e depois, o que eles vão comer, vestir?”, questiona padre Fragoso.

“Nós não podemos fazer tantas coisas para prevenir e nós sabemos que se as coisas não mudarem, se tudo continuar como está na nossa cidade, essa não vai ser a última tragédia, basta olhar a topografia de Petrópolis. Ela não vai ser a última tragédia e, por isso, nós da Igreja Católica precisamos saber como atuar quando a próxima tragédia acontecer. Infelizmente, não temos recursos para evitá-la”, completou.

Mas o poder público tem recursos, instrumentos e informações para evitar tais tragédias. Segundo Ana Elisa Abreu, professora do Departamento de Geologia e Recursos Naturais (DGRN) do IG, os deslizamentos poderiam ser evitados por meio de obras de engenharia. “Terraplenagem, drenagem e obras de contenção são medidas que chamamos de estruturais. Outra forma de atuar nessa área, e que está entre as principais ações do sistema brasileiro de defesa civil, é mapear os riscos relacionados a deslizamentos e implantar medidas não-estruturais. Por exemplo: sistemas de alerta antecipado. Eles permitem evacuar as áreas onde estão os habitantes e eventualmente também os bens em risco, antes que sejam atingidos por um escorregamento”.

Em entrevista à colega Eliane da Fonseca Daré, do Instituto de Geociência (IG) da Unicamp, o professor Jacques Manz, que fez um levantamento das inundações na cidade serrana, afirmou que, “infelizmente, por mais que as políticas públicas estejam presentes, a gestão de risco está longe de ser efetivada na prática. Entre 2012 e 2014, o Brasil investia cerca de R$ 2,5 bilhões anuais em prevenção de desastres. Em 2019, esse valor caiu para R$ 300 milhões, sendo que apenas R$ 99 milhões foram liquidados e nada foi utilizado na prevenção de inundações”.

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