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As dores e as esperanças de quem enfrenta o racismo

Explícito ou velado, reconhecido ou negado, o racismo persiste nas relações e desigualdades socioeconômicas brasileiras. Conheça homens e mulheres que denunciam essa chaga e incidem positivamente para ajudar a curá-la

Há 2 anos - por Daniel Fassa (Revista Cidade Nova)
As dores e as esperanças de quem enfrenta o racismo
(foto por Migalhas)

Em função deste 13 de maio, data em que se comemora o fim da escravidão negra no Brasil, reproduzimos uma matéria publicada pela revista Cidade Nova com relatos de experiências de quem sofre com o racismo. Para além desse sofrimento, a reportagem busca apontar sinais de esperança. 

 

“Aos doze anos, fui com alguns colegas a um show e os policiais que percorriam a fila só pediram meus documentos. Eu era o primeiro negro da fila. Na feira, quando andávamos com minha mãe, as pessoas perguntavam se ela não liberava um de nós para carregar a as compras. Na polícia, enfrentei situações constrangedoras quando as pessoas não entendiam que eu era o escrivão de polícia. Muitas vezes, quando estava em um aeroporto e outros lugares ‘especiais’, perguntavam se eu era pastor, porque estava de terno. Eu e minha esposa enfrentamos situações delicadas em restaurantes e mesmo como casal. Meu filho, na direção do carro, chegou a ser parado três vezes entre São Paulo e Bauru. Várias vezes enfrentousituações de olhar estranho da Polícia Militar em razão do carro e das condições que temos atualmente.”

O relato é de Antonio Carlos da Silva Barros, 57, advogado e professor de Bauru, interior de São Paulo. Mas as situações narradas por ele não são casos isolados. Com diferentes nuances e peculiaridades, fazem parte da vida dos quase 110 milhões de brasileiros que se declaram pretos (9,4% da população total) ou pardos (46,8%), segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) 2019.

Especialista em história social e mestre em ciências da religião, Barros sabe que o Brasil está muito distante de ser uma “democracia racial”. O inaceitável racismo cotidiano experimentado por ele se materializa em dados estruturais.

De acordo com estudo publicado pelo IBGE em 2019, o rendimento médio domiciliar per capita de pretos e pardos é pouco mais que a metade da renda média dos brancos; afrodescendentes são minoria no Legislativo, no Judiciário e em cargos de chefia no mercado de trabalho, ao mesmo tempo em que representam a maior parte das pessoas desempregadas e subocupadas. Além disso, a maioria das vítimas de homicídios e da população carcerária é formada por pretos e pardos. (Confira mais informações no infográfico)

 

Democracia racial?

 

Criada pelo médico e antropólogo Arthur Ramos na década de 1930, a expressão “democracia racial” se popularizou no Brasil e no mundo sobretudo por meio da obra do polímata Gilberto Freyre, autor do célebre “Casa Grande & Senzala” (1933). As raízes dessa tese remontam ao século XIX, quando o cientista alemão Carl von Martius (1794-1868) e o próprio governo imperial apresentavam nosso país como um modelo de convivência harmoniosa entre colonizadores europeus, indígenas originários e africanos escravizados. Uma prova disso seria o fato de sermos uma população miscigenada.  

No entanto, “se existiu uma mestiçagem biológica no Brasil, é difícil exaltá-la”, observa a historiadora Lilia Schwarcz, no artigo “A dialética do isso. Ou a ladainha da democracia racial”, disponível em seu site oficial. Segundo ela, “as relações entre senhores e escravizadas eram, na imensa maioria das vezes, forçadas e não consensuais. Taxas de estupro na alcova dos proprietários escravistas eram das mais elevadas, assim como imensa a quantidade de crianças que apenas conheciam sua filiação materna, uma vez que o pai, de praxe, não oficializava a relação”.

O tardio fim da escravidão em 1888 não veio acompanhado do acesso igualitário a direitos humanos fundamentais, condenando grandes contingentes da população afrodescendente à marginalização e à pobreza. Por essa razão, no fim da década de 1950, o sociólogo Florestan Fernandes problematizou a tese da democracia racial, definindo-a como um mito. Nascia, desse modo, a expressão “mito da democracia racial”, até hoje muito utilizada por pesquisadores e movimentos sociais de defesa dos direitos dos afrodescendentes para evidenciar as injustiças legadas pelo nosso passado escravocrata.

 

Racismo cotidiano

 

Membro de um desses movimentos, o professor e orientador pedagógico Eduardo Ramos dos Santos, 48, de Salvador (BA), evidencia que o mito ainda persiste: “o racismo é algo tão perverso que a todo tempo é renovado e negado, com expressões como ‘você não é negro’, ‘seu nariz é fino’, ‘não existe preconceito racial; você que é desconfiado’, ‘eu queria estar no seu lugar’ e tantas outras perversidades”.

No caminho escolhido por ele para tentar mudar essa realidade – a educação –, as dificuldades não faltam: “continuo sofrendo preconceito e discriminação todos os dias. Quando meus amigos me apresentam para alguém, sempre precisam dizer da minha competência profissional como forma de ser aceito. No trabalho como orientador pedagógico, os pais só me procuram se eu estiver atendendo sozinho na escola”. 

Também soteropolitana, a pedagoga Amélia Lima de Santana Silva, 53, faz análise semelhante: “negar a existência do racismo é fechar os olhos diante do quadro de posturas racistas, de desamor e desrespeito às pessoas”. Mestre em gestão educacional e especialista em logoterapia, ela exemplifica com uma experiência enfrentada na juventude:

“Eu estava trabalhando como secretária em um consultório e uma cliente do meu chefe se aproximou de mim me tratando com inferioridade. Eu já tinha percebido a maneira desrespeitosa com que ela tratava a babá de seus filhos. Quando ela me destratou,  logo percebi que eu e a babá éramos negras. Decidi dizer para ela: não me trate assim, mereço respeito. Ela chamou meu chefe e disse que eu estava destratando-a. Meu chefe respondeu: sobre Amélia, somente tenho elogios. A situação foi tão desconfortável que ela resolveu ir embora. Ela não aceitou o reconhecimento da minha dignidade como jovem negra capaz de desenvolver bem o meu trabalho”, lamenta Amélia.

“O racismo é uma coisa muito velada”, afirma Ana Lúcia Barbosa da Silva, 61, de Duque de Caxias, na baixada fluminense. “Ninguém diz: eu não gosto de negro, eu acho feio, mas a gente sente os olhares”. Pedagoga especializada em educação infantil e literatura infantojuvenil, ela afirma que, dentre as pessoas que negam o racismo, há aquelas que o fazem por ingenuidade ou desinformação. “Falam coisas tipo assim: ‘gente, eu tenho vários amigos negros, é a cor do meu coração’. A gente ouve muito disso, principalmente em grupos religiosos, onde te comparam com outro negro que ascendeu. Nunca te comparam com uma pessoa de pele branca que de repente tem as mesmas qualidades que você. Falam: você é a nossa Fulana de Tal...”, conta Ana Lúcia.

Ela relata outra situação muito comum: “uma vez eu estava com dois amigos, um branco e um negro. Uma terceira pessoa chegou e falou: sabe aquela pessoa moreninha? Eu falei: moreninha não tinha. Tinha um branco e dois negros. [A pessoa respondeu]: Ah, eu não queria ofender. Então ainda hoje a gente ouve coisas como essas”.

Mas, segundo Ana Lúcia, há também aqueles que deliberadamente compactuam com o racismo, ao tentar diminuir sua gravidade: “Falam que é tudo mimimi. Esses eu acho que não é ingenuidade. Eles têm consciência de que existe racismo, sim, mas negam. E a forma de negar é dizer que a gente faz mimimi”.

Mãe adotiva de cinco filhos (três rapazes e duas moças), a pedagoga fluminense evidencia situações enfrentadas por eles: “Eu tenho filhos meninos. Então, para ir ao shopping, eles não podem ir de chinelo, eles não podem ir de boné, porque senão eles são seguidos por seguranças. Quando entram numa loja, tem sempre alguém que entra atrás. Então, o negro hoje tem que se arrumar muito, tem que provar que não é bandido. É uma coisa muito complicada. A gente está no século 21 e convive com isso no nosso dia a dia”.

 

Violência

           

Em 2018, 75,7% das vítimas de homicídio no Brasil eram negras, segundo a última edição do Atlas da Violência, elaborado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em parceria com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. De 2008 a 2018, o número de homicídios de pessoas negras aumentou 11,5%, enquanto entre pessoas não negras houve redução de 12,9%.

Em junho deste ano, essa realidade foi denunciada por um relatório elaborado pelo Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos, que  lança luz sobre as violações dos direitos civis, políticos, sociais, econômicos e culturais sofridas por afrodescendentes em diversos países, dentre os quais o Brasil. Segundo o documento, há “um quadro alarmante de impactos desproporcionais e discriminatórios em todo o sistema sobre afrodescendentes em seus encontros com os sistemas de aplicação da lei e de justiça criminal em alguns Estados”.

Ana Lúcia conhece bem essa realidade: “eu moro na Baixada e constantemente a polícia invade as comunidades e a maioria das pessoas aqui são negras. Não existe lei para a polícia, ela chega de qualquer jeito, invade as casas, não existe mandado, eles tiram de dentro de casa e matam”. Amélia se soma à denúncia: “Não existe tolerância se a pessoa envolvida é negra. No quesito direito à vida, se for negro, é a morte mais rápida, principalmente de jovens”.

 

Esperança

           

Além das inúmeras experiências de racismo enfrentadas, Antonio Carlos, Eduardo, Amélia e Ana Lúcia têm em comum o empenho para tentar incidir positivamente nessa realidade.   

Membro do Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra do Estado de São Paulo e ex-presidente da Comissão do Negro e Assuntos Antidiscriminatórios da Ordem dos Advogados do Brasil-SP (Subsecção Bauru), dentre outras atribuições, Antonio Carlos afirma que o racismo deve ser enfrentado por meio de duas estratégias: o amor e a dor.

“Pelo amor você educa, você conversa. Quando me paravam e perguntavam se eu era pastor, eu dizia: ‘Vamos pensar juntos? E se eu for um advogado?’. Então aquela pessoa, quando vir um outro negro no ambiente em que eu estava, vai pensar de uma maneira diferente. Tem gente que não é por maldade; não somos nós que vamos decidir o que é por maldade e o que não é. Tem gente que foi acostumada a agir assim. Então. nós estamos educando. Fazemos isso, promovemos cursos, vamos elevando as pessoas”, afirma o advogado.

No entanto, explica, há situações em que só resta educar pela dor: “quando a pessoa ultrapassa alguns patamares, não é mais o amor, mas a aplicação da legalidade. Por exemplo, tem pessoas que foram perseguidas no ambiente de trabalho por conta da roupa ligada à Umbanda e ao Candomblé. Com eles a gente aplica a lei. O estado de São Paulo tem uma multa que pode chegar até mesmo à suspensão da atividade da empresa por prática de racismo. Então quando você nota que há uma estrutura que não consegue fazer o diálogo, você tem que impor a lei”.

Ana Lúcia participou durante alguns anos da Pastoral Afro da Diocese de Duque de Caxias e atuou voluntariamente em um curso pré-vestibular para negros e jovens carentes de seu bairro. Além disso, nas duas pós-graduações que cursou, ela produziu trabalhos de conclusão sobre a criança negra: “Eu percebia que a autoestima da criança negra era muito baixa, porque os modelos que a gente via – hoje graças a Deus alguma coisa começa a melhorar, mesmo na TV – era do louro de olhos azuis. Eu procuro trabalhar isso na sala de aula hoje, até porque atuo na baixada, tenho 50% de alunos negros. Então, trabalho os livros de história que falam da criança negra, que mostram a beleza do povo negro, para que eles se sintam belos”.

Amélia, por sua vez, aposta no projeto internacional Living Peace de educação para a paz: “Procuramos perceber as riquezas uns dos outros, trocamos experiências e nos dedicamos ao acolhimento das pessoas que estão invisíveis na sociedade, buscando perceber seus dons e riquezas, respeitando sua cultura e seus valores. Participo também de um projeto de voluntariado em uma escola municipal, onde desenvolvo oficinas em busca de promover o protagonismo dos alunos a partir da vivência de valores na família e na escola, visando à prevenção do vazio existencial”.

 

Um frei contra o racismo

 

A Educafro é uma das mais conhecidas organizações não governamentais de apoio a jovens negros e pobres que desejam ingressar no ensino superior. Fundada pelo frei David Raimundo dos Santos, a entidade organiza cursos pré-vestibulares nas periferias de todo o país, além de oferecer bolsas de estudo para aqueles que ingressam em universidades privadas.

“A cultura da inclusão deve ser a marca do cristianismo em prol do combate ao racismo em todas as suas vertentes. Não podemos mais aceitar as barbáries cometidas pelo racismo e ficarmos inertes. Já passou da hora de as igrejas, inclusive evangélicas, tomarem uma posição em relação ao racismo e não simplesmente fingir que não existe”, afirma o franciscano, que já viu uma fiel se recusar a confessar-se com ele por ser negro.

“O Estado, através da educação, ações afirmativas e políticas públicas, tem o dever de recuperar o empoderamento e a história do nosso povo”, prossegue frei David, ressaltando também a importância da inclusão digital da população afrodescendente. Por isso, a Educafro lançou recentemente a plataforma educafrotech.educafro.org.br, que concede bolsas de estudo a jovens negros desempregados para auxiliá-los a superar a atual crise econômica.

 

Infográfico – Desigualdades sociais por cor no Brasil

Confira o estudo completo pelo link:

https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf

 

Reportagem publicada originalmente na edição de agosto de 2021 da revista Cidade Nova.

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