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Neutralidade é artifício para não discernir

Há 3 anos
Direito dos indígenas brasileiros à terra é um direito anterior ao próprio Estado brasileiro
Direito dos indígenas brasileiros à terra é um direito anterior ao próprio Estado brasileiro (foto por Fotos Públicas)

Escrevo neste 19 de setembro de 2021 para homenagear Paulo Freire que enobrece o Brasil, nascido há 100 anos, agraciado com títulos de Doutor Honoris Causa por mais de 35 Universidades pela contribuição educacional sem precedentes dada a humanidade. Libertador é reconhecer que o sonho do oprimido é tomar o lugar dos opressores, e as palavras geradoras de vida com as quais se aprende e ensina estão encarnadas para nos tirar dessa alienação, quando contextualizadas no processo de ensino-aprendizagem que acontece de forma dialógica, crítica, prazerosa e sempre mutuamente respeitosa.

Por isso vou retomar uma reflexão a respeito das compreensões equivocadas divulgadas pelo agronegócio que pautou a tese igualmente equivocada do marco temporal que gera ilusões no contexto do STF. Esse está sendo bombardeado nos nossos dias, pois está em curso uma decisão que é um divisor de águas na forma do Brasil fazer justiça aos povos indígenas que aqui vivem. Não por acaso, um deputado mencionou que foi equivocado dar cidadania aos indígenas na Constituição de 1988, pois na visão dele, teríamos que continuar exterminando os povos autóctones para tomar deles de vez o que eles legaram ao Brasil.

Vamos aprender a contextualizar, pois sem isso não temos como decidir bem; precisamos conhecer as artimanhas dos processos. A edição e promulgação da Lei 4.505, de 30 de novembro de 1964, conhecida como Estatuto da Terra, atuou para legalizar as grandes propriedades agrícolas como empresas, ou seja, dispôs os instrumentos jurídicos capazes de estabelecer uma mentalidade empresarial na forma de tratar a mãe-terra e os bens que ela encerra. Assim, a Reforma Agrária viu suas lutas serem desmobilizadas pelo aparelho repressor do Estado, uma continuidade da atuação dos bandeirantes que avançaram para ocupar o interior como desbravadores destemidos, “heróis” nas incontáveis expedições que invadiram os territórios indígenas, ocasionando o extermínio de muitos povos.

A Constituição Federal de 1988 reconheceu as particularidades que cada grupo étnico mantém com seus territórios, pois o tradicionalmente transcende as circunstâncias temporais, isto é, diz respeito ao modo tradicional dos indígenas ocuparem e utilizarem as terras para a sua sobrevivência, ao modo tradicional de como eles também se relacionam com a terra, ou seja, segundo seus usos, costumes e tradições. No artigo 231, encontramos: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. O conceito terras tradicionalmente ocupadas foi assim definido para evitar eventual interpretação imprópria, pois uma dessas características já justifica a sua demarcação: aquelas por eles habitadas em caráter permanente, aquelas utilizadas para suas atividades produtivas, aquelas imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e aquelas necessárias a sua reprodução física e cultural.

A CF/88 queria dar cidadania aos excluídos, por isso, a terra passa a ser um direito permanente também dos indígenas e tornou-se dever do Estado promover a legalização da posse e do usufruto dessas terras porque trata-se de um direito preexistente, visto que se trata de um “direito originário”. Trata-se de uma concepção inédita e juridicamente revolucionária no Brasil, que confere direitos aos povos indígenas, representa o rompimento da ideia integracionista defendida repetidamente ao longo dos anos pelas políticas indigenistas. Em outras palavras, foi atribuído à União a responsabilidade em demarcá-las, proteger e zelar pelo respeito sobre seus bens. Esse direito originário é precedente e anterior ao próprio Estado. Por essa razão, independe do reconhecimento do próprio Estado, porque são direitos inatos que antecedem à formação do Estado e a promulgação de qualquer outro ordenamento jurídico brasileiro. Como diz o antropólogo João Pacheco de Oliveira, decorre de sua conexão sócio-cultural com povos pré-colombianos que aqui habitavam com tradições ancestrais etnicamente diferenciadas de outros segmentos da sociedade nacional.

Assim a CF/88 ampliou a compreensão do território que estava reduzida apenas ao espaço físico necessário para a moradia e subsistência física das populações indígenas. Agora, o território passa a ser entendido como direito fundamental para a reprodução cultural. Assim sendo, existe a necessidade de proteção do Estado-nação sobre essa soberania do território que é coletiva, não privada. A legislação vigente que regulamenta as propriedades no Brasil está viciada ao pensar somente em terras privadas e públicas. A noção de terras privadas segue a lógica capitalista e individualista, que dá direito para sua exploração econômica, para vendê-la etc. A noção de terras públicas ou devolutas está associada à responsabilidade do Estado, mas essas terras pertencem a todos os cidadãos da nação. Historicamente, os que tomaram o poder no Estado beneficiava certos grupos em detrimento de outros; por isso, a fragilidade do Estado estava em práticas jurídicas que asseguravam o reconhecimento dos que estavam no governo segundo a lógica dos invasores, não dos indígenas.

Mas as terras indígenas não podem ser vendidas ou alienadas segundo a CF/88, pois os povos indígenas representam uma categoria de povos tradicionais que estava recebendo o devido reconhecimento por parte Estado brasileiro com estudos antropológicos sérios. Porém, o governo atual resolveu voltar ao colonialismo e, seu representante no STF, nesse dia 15/09, o ministro Kássio Nunes Marques, votou a favor do Marco Temporal,[1] ou seja, quer anistiar as invasões de terras indígenas antes da promulgação da Constituição e, assim, votou contra os direitos originários dos povos indígenas não acompanhando o voto do relator, o ministro Edson Fachin, que se posicionou contra a tese do agronegócio e a favor dos direitos constitucionais dos indígenas. O Processo definirá o futuro das demarcações de terras indígenas no Brasil, por isso vivemos bons tempos e podemos acompanhar a Justiça se mostrando que. de modo algum é neutra, mas tem lado, o que não impede que se busque ao máximo não estar vinculado às partes para não inviabilizar o próprio Processo.

Logo após o voto, o ministro Alexandre de Moraes pediu vista e o julgamento foi suspenso, sem data prevista para retorno e desmobilizar os indígenas que fazem meses estão em Brasília se manifestando contra o marco temporal. No dia 16, cerca de 150 lideranças indígenas protocolaram no STF uma carta destinada ao ministro Alexandre de Moraes na qual pedem celeridade no voto da Suprema Corte. Os indígenas pensam que os ataques do governo ao STF favorecem os votos contra o marco temporal, contudo, estamos diante de uma incógnita.

 

[1] Assista ao vídeo https://youtu.be/0eNnqs_dFsM; https://bit.ly/NunesMarcoTemporal; Ouça: https://bit.ly/RádioCimi_edição37; https://bit.ly/cartapovosMoraes

Sobre o autor

Aloir Pacini

Antropólogo, jesuíta e professor da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) em estágio pós-doutoral com pesquisa sobre o território transnacional dos Guaranis. Fez Mestrado no Museu Nacional (UFRJ) com estudos sobre as Missões com os Rikbaktsa e o Doutorado com os Chiquitanos (UFRGS). Em etnologia indígena, estuda os territórios tradicionais (águas) e suas vinculações com as identidades nas fronteiras dos Estados. Seu trabalho reflete o do cuidado da casa comum (proposta do Papa Francisco) e os papéis das instituições nas sociedades, também da Igreja no contexto de Mato Grosso e Brasil.
 

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