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Nas trilhas de Sepé Tiaraju

Há 2 anos
Sepé Tiaraju: herói contra a dominação colonial
Sepé Tiaraju: herói contra a dominação colonial (foto por Portal das Missões)

Em busca de São Sepé, andamos entre 14 a 20 de novembro de 2021 pelo Rio Grande do Sul e até cruzamos a fronteira seca com o Uruguai, região habitada tradicionalmente pelos índios pampeanos (Guarani, Guenoa, Minuano e Charrua), os guardiões de uma região de afloramento das águas do Aquífero Guarani, por isso não tão seco assim. Chegamos à cidade de Santana do Livramento (RS), divisa com Rivera (Uruguai).[1] O afloramento de águas potáveis ali dão sustentabilidade para essas cidades fronteiriças que possuem uma convivência pacífica e um lugar de intensa articulação sem muitas burocracias estatais.

No Museo sin fronteras conhecemos o trabalho generoso de Antonio Boero para conseguir juntar peças de cultura missioneira e arqueológica que contam a história dessa região, especialmente das Missões. Ele nos contou que as imagens dos Santos o buscavam, o seguiam e o esperavam para que as buscassem. Até no lixão encontrou imagens. Ele disse que tremia ao retirá-las dali, pois algum evangelista a jogara fora. E pensei nos aprendizados que temos que fazer como civilização no tempo presente, reciclar as coisas para poder vivermos mais tempo e melhor.

Desde pequeno, minha mãe sempre dizia para não jogar nada fora, principalmente comida, porque alguém está passando fome. Assim, ao trabalhar com os moradores em situação de rua e catadores de papel e outros materiais recicláveis, aprendi o valor até das coisas que são jogadas, e podemos reutilizar com sabedoria tudo: se é comida, pode ser reutilizada de formas diferentes até ser dada aos porcos; se é roupa sempre um remendo dá conta de fazer o conserto, como minha mana Marilene faz com minhas roupas...[2] E aqui está o detalhe que desejo mencionar sem mais delongas: imaginem as imagens das Missões Guarani-jesuíticas jogadas por aí.

Antônio Boero tem um acervo de 12 mil peças, entre as quais 475 imagens de santos que ele recolheu por naquela região. Foram propositadamente espalhadas e jogadas para que não contassem mais histórias. Mas elas continuam falando alto por onde passam e isso mostra o mana, a hau, o tekôporá Guarani, ou seja, é possível constatar a ação humana e espiritual por meio dessas imagens encontradas por onde passam. No caso, a casa de Antônio Boero não parece ser o melhor lugar, pois ele diz que está cansado, já que saíram dos espaços mais sagrados das famílias e das igrejas: que encontrem um museu para abrigá-las e que ali continuem a contar suas histórias para que as nossas crianças não cresçam ignorantes sobre o que se passou entre nós.

No lado brasileiro, o padre Pedro Ignácio Schmitz publicou[3] sobre os cascos de Yapeyú e, em Rivera, conversei com Daniel Cortazzo que faz um levantamento semelhante das marcas da Missão de Yapeyú por lá para que possamos conectar as histórias vividas. A região central é do confinamento propriamente dito dessa grande quantidade de água como uma grande bacia, um local cosmológico sagrado de ocupação tradicional dos índios Guarani e Kaingang.

Depois que as Missões Guaranis foram desfeitas numa crueldade sem limites pelos impérios português e espanhol, com os pueblos missioneiros destruídos, a militarização da região gerou outras formas de opressão e de ocupação dos territórios indígenas. Em 1770, os espanhóis, liderados por um comerciante de nome Pedro Ansuateguy, magro e alto, conhecido como Dom Pedrito, morador numa picada dos matos que margeiam o rio Santa Maria, formaram um povoamento em 1800.[4]

No interior do Uruguai surgiu em 1811 um movimento generalizado de descontentamento contra os espanhóis, chefiado por Artigas, que levou à independência do Uruguai. Esse não foi, no entanto, nenhum pouco amigo dos indígenas. Dona Carlota Joaquina, esposa de Dom João VI, que tinha relações de parentesco muito próximas à Coroa Espanhola, conseguiu de seu esposo a ordem para que as forças luso-brasileiras, concentradas ao longo das fronteiras do Rio Grande do Sul, penetrassem em terras castelhanas para cooperar com os exércitos monarquistas espanhóis sitiados em Montevidéu. Dom Diogo de Souza chefiava o “Exército Pacificador da Banda Oriental” de três mil homens (os dragões de Rio Pardo e o regimento de Cavalaria Ligeira Sul Rio-grandense), e acampou por um tempo relativamente longo aos pés dos cerros de Bagé.

Chegamos a Bagé e uma sala no Museu Dom Diogo de Souza faz memória do historiador Tarcisio Antonio da Costa Taborda, filho de Attila e Júlia Taborda, irmão do jesuíta Francisco Taborda, que é meu mestre na Companhia de Jesus. Se é para ter uma data oficial para a fundação de Bagé que seja o dia 17 de julho de 1811, ocasião em que o exército luso-brasileiro deixou o acampamento em direção a Cerro Largo, levando dez mil cavalos e dois mil bois.[5] A tropa ultrapassou o rio Jaguarão-Chico, acampou no passo de Aceguá e daí foi para a Fortaleza de Santa Teresa. A ordem para deixar a região chegou em época equivocada: era inverno, muita chuva, os rios estavam cheios e não davam passagem para as carretas carregadas. Dom Diogo deixou em Bagé parte dos soldados, comerciantes e mulheres que haviam acompanhado o exército, alguns doentes, cirurgiões e mantimentos. O tenente Pedro Fagundes de Oliveira ficou como comandante do acampamento de Bagé, o que fez surgir um novo vilarejo que oferecia água potável, lenha e proteção na fronteira, bem diferente do aldeamento precário da antiga Guarda de São Sebastião.

Assim chegamos também em São Gabriel, no lugar do martírio de Sepé Tiaraju (07/02/1756) e das Romarias da Terra, e encontramos pousada na Chácara das Flores, que já foi acampamento dos Sem Terra, um lugar primoroso no centro Rio Grande do Sul que tem muita história bonita para contar. Aliás, como faz bem encontrar pessoas interessantes que fazem a história do nosso Brasil.[6] Aqui se mostra também como se pode ser artista e fazer um jardim de flores com criatividade sem fim da família Abib, do saudoso Irmão Miguel Abib, jesuíta que deu a vida em Diamantino (MT). Fomos até Caiboaté, local onde se deu o massacre de mais de 1500 Guaranis em emboscada dos exércitos de Portugal e Espanha (Brasil e Argentina). Como o monumento foi tratorado em 2009 e o negacionismo da nossa história parece estar também enraizado nos poderes políticos municipais, aqui estamos refletindo a respeito da nossa história. Que o bom Deus tenha consigo nossos antepassados, porque aqui na terra sua família continua aprontando arte!

E chegamos em Salvador do Sul para celebrar 25 anos da Paróquia dedicada aos três mártires das Missões, e 25 anos de sacerdócio do pároco Pedro Ritter e meu. A festa vai reverter financeiramente para o Natal dos haitianos da Terra Prometida (Cuiabá). Assim vamos alcançando consciência da nossa história, dos migrantes alemães, italianos e outros que vieram expulsos pelas guerras e fomes da Europa, dos negros que vieram escravizados da África e dos índios que acolheram a todos no Brasil. Enquanto isso, seguimos assistindo o governo atual, com imensa ingratidão, trair sistematicamente as formas de boas-vindas ensinadas pelos indígenas.

 

[1] Essa povoação portuguesa permanente da região de fronteira seca com o Uruguai iniciou-se com a usurpação dos territórios indígenas que foram oficializados com a doação de sesmarias feitas pelo Marquês de Alegrete, em 1814. Diogo de Sousa, o conde de Rio Pardo iniciou a nova povoação com a construção de uma capela dedicada à Nossa Senhora do Livramento, mas a doação da imagem de Sant'Ana fez com que fosse necessário um arranjo para que ambas as devoções se perpetuassem no local. Fundada a cidade em 30 de julho de 1823, foi elevada à categoria de município em 1857, emancipando-se de Alegrete.

[2] Penso que não podemos reciclar é o negacionismo e os fake news do bolsonarismo que tem trazido tanta miséria, desmatamento e fome para o Brasil, mas em tempos de carestia até dos ossos se pode fazer uma sopa.

[3] A GRANDE ESTÂNCIA DE YAPEYÚ (Pesquisas. Antropologia, n° 75 Ano 2020) www.anchietano.unisinos.br/publicacoes/antropologia/volumes/075.pdf

[4] Esse lugar tornou-se sede do município Dom Pedrito, emancipado em 1872.

[5] Data que também faz memória do martírio dos 40 jesuítas que estavam em viagem para o Brasil e os piratas, a mando dos ingleses, os jogaram no mar

[6] Foi erigido um monumento de 25 metros de altura na Sanga da Bica, local do martírio de Sepé Tiaraju com a cruz missioneira na ponta. A gestão da prefeitura de 2009-12 quis apagar a memória dos povos indígenas e derrubou o monumento.

Sobre o autor

Aloir Pacini

Antropólogo, jesuíta e professor da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) em estágio pós-doutoral com pesquisa sobre o território transnacional dos Guaranis. Fez Mestrado no Museu Nacional (UFRJ) com estudos sobre as Missões com os Rikbaktsa e o Doutorado com os Chiquitanos (UFRGS). Em etnologia indígena, estuda os territórios tradicionais (águas) e suas vinculações com as identidades nas fronteiras dos Estados. Seu trabalho reflete o do cuidado da casa comum (proposta do Papa Francisco) e os papéis das instituições nas sociedades, também da Igreja no contexto de Mato Grosso e Brasil.