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Compreendo a urgência de usar também a mão esquerda e o bom senso

Há 2 anos
Deputada federal indígena Joenia Wapichana: "Tudo que Bolsonaro sonhou explorar em terras indígenas está no PL 191!"
Deputada federal indígena Joenia Wapichana: "Tudo que Bolsonaro sonhou explorar em terras indígenas está no PL 191!" (foto por Wikipédia )

Neste momento histórico fatal da pandemia que deixou marcas indeléveis na humanidade e das guerras que afloram aqui e acolá, mostrando a ignorância dos lados em conflitos que alimentam a indústria bélica e os lucros de alguns, temos que pensar como vão as coisas aqui no Brasil. Por isso, desejo pensar a atualização na Missão de Cristo ressuscitado nesse tempo pascal que nos faz ver novas todas as coisas e acontece historicamente em tantos lugares, também por meio dos jesuítas que, desde o início, tiveram atitudes proféticas no serviço à Igreja e aos povos indígenas por causa de Jesus Cristo que primeiro se colocou do lado dos pobres e marginalizados em sua época.

De modo especial no Mato Grosso, os jesuítas foram despojados suficientemente para apagar-se e deixar que os povos indígenas crescessem, desabrochassem e tivessem voz e vez na sociedade, no Estado e na Igreja na dinâmica do Concílio Vaticano II. Por isso, os jesuítas em Mato Grosso foram fundamentais, ao fecharem o internato de Utiariti e indo morar com os indígenas em suas aldeias em 1968, levando à criação do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), órgão anexo à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), estratégia acertada para ter respaldo institucional, principalmente no tempo da ditadura militar. O testemunho sem equívocos dos mártires Padre João Bosco Burnier e Irmão Vicente Cañas confirmam a Missão de dar a vida para os povos indígenas por causa de Cristo. A atuação discernida do Conselho Indigenista Missionário completa agora, no dia 23/04, seus 50 anos, um profetismo junto aos indígenas iniciado aqui no Mato Grosso que merece ser narrado. Além dos aspectos religiosos, os indigenistas missionários também se esmeraram em cuidar do que deve ser antropologicamente preservado nas culturas e costumes destes povos, especialmente os territórios, os processos educativos específicos e diferenciados e a saúde integral.

Quando Jesus Cristo orienta que a caridade tem que ser discreta e gratuita, ao dar alguma coisa a um necessitado (cf. Mateus 6,3), que não fiquemos contando o que foi feito para engrandecer nosso ego, como fazem os hipócritas nas casas de oração e nas ruas, parece que isso não está relacionado com a necessidade de compreensão de instituições como o CIMI, ou mesmo com a prestação de contas do uso dos recursos públicos pelos governos e instituições públicas. Por isso, é necessário que os gestores mostrem onde utilizaram os impostos e como foram as negociatas com os bens do país, pois esses não lhes pertencem. O fato de Jesus explicitar que a mão esquerda não fique sabendo o que faz a direita não deixa de ser curioso, pois a premonição da mão de mando masculina parece prevalecer também na cosmovisão da sociedade na qual Jesus nasceu.

Nesse quesito estamos presenciando escândalos no Ministério da Educação, nos vários campos de atuação do governo que tomou conta desse país e parece mais escandaloso ainda porque usa o nome de Deus em vão, para aparentar certa moralidade, quando serve somente para acobertar o mal feito. A SEDUC-MT também resolveu impor às escolas indígenas uma dura prova nesse ano e ainda estamos colhendo os frutos perversos da nucleação e das exigências de estudos universitários para os professores indígenas, isso sem contextualizar a realidade vivida por eles. Perverso já era o processo de contratos temporários para os indígenas a cada ano e quase não se tem professores indígenas efetivados. E agora até esses ficaram sem contratos de trabalho!

Acompanhamos a mobilização indígena em Brasília, na Esplanada dos Ministérios de 4 a 14 de abril Acampamento Terra Livre (ATL) – o maior evento que vêm se realizando anualmente, desde o ano 2004, pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). Representantes dos 305 povos indígenas do Brasil mostraram suas exigências básicas de vida humana mais digna, ora dialogando em pequenos grupos étnicos ou em manifestações culturais próprias para recolocar o Brasil no rumo da Constituição de 1988, para alcançar a demarcação dos territórios tradicionais em vista do seu usufruto e aldear nossa política. Aqui do Mato Grosso foram 11 ônibus, cerca de 600 indígenas das 44 etnias para essas mobilizações.

O ATL é um movimento de resistência criativa que vêm das comunidades indígenas articuladas para que se sintam fortalecidas, já que são em geral minorias onde moram, o que serve de esperança para os tempos atuais, já que as propostas indígenas circulam em torno de um bem viver integral. Por isso, evangelizar nesse contexto é tornar real a Boa Nova do Evangelho de Jesus Cristo, ao garantir os direitos dos povos indígenas de forma eficiente a começar pela “mãe” de todos os direitos, qual seja, o direito de usufruto exclusivo dos territórios tradicionais para que esse bem viver dos povos originários seja garantido, pois sem a terra-mãe eles não sobrevivem. O respeito pelas suas formas de vida e de religiosidade faz parte da forma como devemos estar caminhando juntos como irmãos diferentes no mesmo chão de salvação. De modo algum é necessário que os indígenas deixem de ser indígenas para estarem em comunhão com Deus, pois seu modo de ser e viver como indígenas é fruto de uma relação muito íntima com Deus!

Os pontos de enfrentamento dos indígenas estão relacionados com as leis que representam a "passagem da boiada" sobre os povos indígenas e os biomas onde eles estão. O movimento indígena é de vigilância constante contra o Projeto de Lei 191/2020, que objetiva liberar as Terras desses povos para serem exploradas pelo extrativismo mineral de ouro, diamantes, petróleo, exploração de madeira, plantação de soja, hidrelétricas e outras invasões. Nesse sentido, a intenção do governo Bolsonaro é liberar as terras indígenas para a exploração capitalista do deus mercado. A deputada federal indígena Joenia Wapichana em entrevista para a Agência Pública afirmou categoricamente: "Tudo que Bolsonaro sonhou explorar em terras indígenas está no PL 191!"

Outro aspecto que tem mobilizado os indígenas é a tese do "Marco Temporal" que também será julgada no Supremo Tribunal Federal (STF), a qual mudaria a Constituição de 1988 que reconhece a validade das terras originárias. Caso essa Lei passar, fica chancelada a perda dos direitos aos territórios até mesmo as terras indígenas já demarcadas no Brasil. Antonio Eduardo de Oliveira, secretário executivo do CIMI, denunciou no Conselho de Direitos Humanos da ONU que "a paralização da demarcação de terras indígenas é um vetor para as demais violações!"

Na polarização da nossa sociedade entre a esquerda e a direita nos tempos atuais, tem quem escolhe o fato social total da Revolução Francesa para explicar a esquerda como os da plebe que foram colocados daquele lado na ocasião, e as elites (clero e nobreza) colocados na direita para a tomada das decisões nas Assembleias em dita Revolução. Pessoalmente, considero mais relevante o sentido da mão esquerda ser o lado do coração, do feminino, da democracia que dialoga, acolhe e distribui a cidadania para os mais fragilizados... e a mão que bate ser a direita do chicote, das armas, da imposição pela força sem argumentos. Ou, para quem gosta de uma linguagem religiosa, os poderes estabelecidos na época de Jesus mostram como os militares associados à direita já tendiam a se impor pela força física ou do dinheiro e a esquerda tendia a ser associada ao cuidado que Jesus Cristo tinha com os excluídos, os marginalizados etc. e, por isso, foi preso, torturado e morto para que esse amor até aos inimigos não se tornasse regra. Contudo, ao ressuscitar, Jesus Cristo se tornou padrão de comportamento para todos. A superficialidade das explicações não é o caso de ser questionada por mim agora, pois acho originais as formas de calar a boca da direita que tomou o poder no Brasil e, de forma fascista, desmontou as instituições do Estado que atuavam em benefício do povo e apregoa que deseja acabar com o “comunismo” do PT que privilegiava os pobres quando estava no governo. Só penso que essa direita não lê e não gosta de livros, por isso não compreende de forma mais aprofundada seus argumentos defasados para justificar-se no poder a partir de Hertz![1]

O certo é que estamos aprendendo sempre e presenciamos aqui em Cuiabá uma motociata[2] no “dia dos povos indígenas”, um escândalo de gasto de dinheiro público sem sentido, campanha política antecipada que mais afasta os eleitores do que atrai pela forma ostensiva como é feita, justamente nesse abril indígena que teve a maior concentração de protestos indígenas em Brasília (no ATL), ou o abril vermelho por causa do assassinato cruel dos 21 Sem Terra pela polícia militar (em Eldorado do Carajás – Pará em 17/04/1996) ou da chacina de 9 trabalhadores rurais no Assentamento Taquaruçu do Norte (Colniza – MT em 19/04/2017). São lembranças que não se apagam das memórias, porque as maiores vítimas dos desmandos do governo, continuam acontecendo contra os mais pobres. Mais feio ainda fica quando os governantes tentam fazer-se passar por cristãos, mas a falta de amor fraternal fica tão escancarada na fome que voltou tão grosseira na mesa dos brasileiros, nas invasões das Terras Indígenas ou no aumento dos moradores de rua, e os fatos falam por si mesmos.

Os primeiros cristãos viveram uma época em que a prática do cristianismo podia significar o martírio, mesmo assim demonstravam o seu amor fraternal, arriscavam a vida para auxiliar os irmãos perseguidos e chegavam a serem admirados até pelos seus perseguidores. Por isso que os Padres da Igreja disseram que o sangue dos mártires era semente de novos cristãos. E Tertuliano, um escritor cristão do segundo e terceiro séculos, registrou a declaração de um oficial pagão: "Observem como esses cristãos se amam!" O amor fraterno brotava gratuito pela ação do Espírito Santo nos corações que não temiam mais a morte e as perseguições dos gabinetes do ódio que já naquela época atuavam nos poderes estabelecidos. Os ensinamentos de Jesus Cristo não eram uma veste exterior como usavam os fariseus ou muitos padres que só se preocupam com os paramentos ou casulas que vão usar, mas algo que brota do mais profundo do ser cristão.

 

[1] HERTZ, Robert. A preeminência da mão direita: um estudo sobre a polaridade religiosa [1909]. Religião e Sociedade, n. 6, 1980.

[2] Quatro jovens corajosos mostraram em faixa nesse ato as contradições desse governo e gritavam Fora Bolsonaro!

Sobre o autor

Aloir Pacini

Antropólogo, jesuíta e professor da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) em estágio pós-doutoral com pesquisa sobre o território transnacional dos Guaranis. Fez Mestrado no Museu Nacional (UFRJ) com estudos sobre as Missões com os Rikbaktsa e o Doutorado com os Chiquitanos (UFRGS). Em etnologia indígena, estuda os territórios tradicionais (águas) e suas vinculações com as identidades nas fronteiras dos Estados. Seu trabalho reflete o do cuidado da casa comum (proposta do Papa Francisco) e os papéis das instituições nas sociedades, também da Igreja no contexto de Mato Grosso e Brasil.