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Não vamos arquivar nossas memórias: dois anos do Massacre dos Chiquitanos!

Há 2 anos
Massacre dos indígenas  Chiquitianos, da Bolívia: verdade a ser esclarecida
Massacre dos indígenas Chiquitianos, da Bolívia: verdade a ser esclarecida (foto por CIMI)

As análises mais aprofundadas do contexto de violência no país revelam que isso é provocado por quem está no poder nesse momento da história do Brasil. A política de incentivo às armas de fogo, os discursos de ódio que partem dos adeptos dessa seita que tomou o poder no Brasil fez com que se abrissem mais clubes de tiro ao alvo do que escolas ou universidade e as indústrias de armas vendessem como nunca. E o pior é que a falácia é que isso não traz nenhuma segurança, somente mais violência e a fragilização das populações mais pobres. E, como cristãos, buscamos somente a Justiça e Paz. Nosso Deus nunca foi uma arma de fogo como deu a entender recentemente a marcha para Jesus em Vitória (ES) e nem compactua com a eliminação do inimigo como forma de superação das nossas divergências. Arquivar, desarquivar, anarquivar, não é anarquia, mas um cuidado com a memória e uma estratégia de sobrevivência no meio da violência praticada pelas polícias e pelas milícias.

Não quero ser nem exaustivo nem neutro nos processos, porque isso estressa mais do que ter lado e saber-se limitado. Os arquivos são lugares onde são depositadas coisas valiosas, mas são como museus, coisas mortas que precisam ser revividas e seus significados atualizados. Por isso, não podemos arquivar nossas memórias dos feitos sofridos enquanto injustiças e violências que não damos conta de trabalhar o suficiente para curar de fato, e aparecem insistentemente como um muro que revela nossas dores. A memória dos acontecimentos partilhados pode ser trabalhado e seus significados podem também podem ser negociados.

As novas tecnologias digitais trazem outras possibilidades de arquivamento, mesmo que seja nas nuvens, mas a essência é a mesma. Fizemos uma live[1] para fazer memória da chacina no segundo aniversário (11/08) e falar do arquivamento do processo, ou seja, o inquérito policial concluiu que não houve crime por parte da Polícia Militar, o Grupo Especial de Fronteira (Gefron).[2] Uma vez aplicado o arquivamento do Processo, somente um fato novo ou uma perícia técnica qualificada até nas fotografias tiradas dos corpos mutilados por tortura e tiros que são dados em pessoas que já estavam rendidas no chão. Por isso, os tiros passam primeiro nas pernas e braços para depois atingir regiões mais vitais, são sinas de que estavam instintivamente se defendendo, ou tiros no ouvido para mostrar que não foram alvejados em fuga, como o Boletim de Ocorrência menciona. Assim, penso que os discursos aplicados a esse âmbito ainda são ilações da minha parte, porque não sou perito nessa área criminal. Ou seja, em outro texto, apelamos para mundos desconhecidos como metáfora,[3] porque as testemunhas “mais humanizadas” foram todas eliminadas, sumariamente mortas. Por isso, apelamos para os cachorros que nos falassem do que viram, mas não sabem falar e não valem para contrapor a voz de poder dos policiais do Gefron.

Contudo, na fraqueza dos indígenas Chiquitanos na Fronteira com a Bolívia, sabemos que a verdade um dia vai prevalecer, a mentira tem perna curta e os pais da mentira tem seus dias contados. As versões dos fatos trazidos pelos próprios Chiquitanos possibilitam a descoberta dos seus pontos cegos, ao mesmo tempo que reativam um debate sobre a visão relacional e descolonial, porque não é digno das polícias praticarem a violência e ainda serem pagas pelo dinheiro do imposto que eu e você pagamos. Pior: nós estamos pagando para as forças armadas nos matarem. Isso parece absurdo, mas é isso que estamos vivendo no Brasil. A perspectiva de análise antropológica comportamental ou psicológica mostra que os assassinos em série acabam no inferno, porque não conseguem mais dormir em paz.

Nesse momento do debate desencadeado pelo advento das novas humanidades estendida para a natureza, a árvore cravejada de balas onde os Chiquitanos foram torturados e mortos, ou mesmo os cachorros que os acompanhavam nas caçadas são testemunhas mais dignas que os humanos fardados, pois atrás das fardas estão guardados seus crimes. As verdades também estão no ar e as humanidades digitalizadas podem ser aprofundadas, sobretudo no que diz respeito às novas possibilidades de acesso à verdade. Os documentos disponibilizados já dizem algo que permitam à comunidade saber que algo estava errado nos procedimentos que não são nada normais, apesar de tudo isso o inquérito foi arquivado. Mas não será para sempre, pois existe um Deus que sabe tudo e vem revelar coisas ainda inusitadas para a humanidade que está em nós se sobreponha às desumanidades que muitas vezes já nos venceram e talvez nos levem à destruição da espécie humana.

Os grupos de devastação da natureza e as formas de militarizações do Estado serão superados em breve, assim espero ardentemente. Suas manipulações e reordenações para mudar a versão dos fatos é muito mais frágil que a verdade que surgirá para a produção do novo tempo da história dos pequenos no Brasil. Talvez por isso se torna mais urgente que se levantem pessoas a serviço da Paz, cristãos de verdade sintonizados com a prática de Jesus Cristo, vocacionados à vida em plenitude, ao serviço da vida nos nossos irmãos e irmãs, no cuidado da nossa Casa Comum.

 

[1] https://youtu.be/-b26b133tOs

[2] Ver PACINI, Aloir; COSTA, Loyuá Ribeiro F. M. da. A chacinagem dos Chiquitanos. Cadernos IHU ideias ano 19 • nº 317 • vol. 19 • 2021 ISSN 1679-0316 (impresso) • ISSN 2448-0304 (online).

[3] https://www.ihu.unisinos.br/categorias/605554-se-meu-cachorro-falasse-poderia-ser-testemunha-do-acontecido-com-os-chiquitanos

Sobre o autor

Aloir Pacini

Antropólogo, jesuíta e professor da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) em estágio pós-doutoral com pesquisa sobre o território transnacional dos Guaranis. Fez Mestrado no Museu Nacional (UFRJ) com estudos sobre as Missões com os Rikbaktsa e o Doutorado com os Chiquitanos (UFRGS). Em etnologia indígena, estuda os territórios tradicionais (águas) e suas vinculações com as identidades nas fronteiras dos Estados. Seu trabalho reflete o do cuidado da casa comum (proposta do Papa Francisco) e os papéis das instituições nas sociedades, também da Igreja no contexto de Mato Grosso e Brasil.