Cookies e Política de Privacidade
A SIGNIS Agência de Notícias utiliza cookies para personalizar conteúdos e melhorar a sua experiência no site. Ao continuar navegando, você concorda com a nossa Política de Privacidade.

Mentir e imperar

Há 3 anos
Mentir e imperar
(foto por Agência Senado)

Ao tornar-se independente, o Brasil transformou-se em império. Por que império e não reino? Por causa das suas dimensões territoriais. As ameaças de ruptura do Brasil durante a fase imperial não foram poucas, mas foram todas sufocadas. Nunca houve consensos locais suficientes para a separação do Brasil ou força militar à altura dos embates com as forças imperiais. Permanecemos unidos pela força e pela experiência que os colonizadores empregaram e, antes deles, os antigos usaram para criar os seus domínios: divide e impera. Faz-se isso, impondo a força aos mais fracos e criando alianças com os mais fortes.      

Mesmo assim, o Império do Brasil acabou, arrastado pela crise econômica causada pela Guerra do Paraguai e pela insatisfação dos setores de apoio: militares e proprietários de terra em crise e apavorados com a perspectiva do fim do regime escravocrata. Fundamos a República, onde dois principais modelos foram usados para evitar a desagregação do país: a política dos governadores e, mais tarde, a política café-com-leite, na qual se estabelecia um acordo de alternância de poder, com o governador do Rio Grande do Sul exercendo a moderação em diálogo com os governadores do Nordeste. Rompido o acordo, como conta a história, rompe-se o equilíbrio e entramos na Era Vargas.
O que não se obtém pela concórdia, alcança-se pela força, como os vários episódios ditatoriais do nosso percurso nacional revelam.

Hoje estamos diante de um quadro inédito, ainda atônitos e despreparados para enfrentar: trata-se do domínio da mentira. Não se trata de um fenômeno exclusivo: estratégias de domínio político baseadas em fake news, em alt-facts (realidades alternativas), negacionismo e ataques ao conhecimento são usadas em vários países, chocando as pessoas de bom senso e atingindo assustadores consensos eleitorais.

Contra os adeptos dessas estratégias é inútil utilizar a análise do discurso para desconstruir as mentiras contadas. Pelo contrário, o resultado dessa abordagem é frustrante, pois somos obrigados a constatar que não se trata de um erro conceitual ou de uma convicção que possa ser debatida. O uso da mentira como estratégia de domínio está além dessas considerações, pois não se coloca no campo de discussão.

Ao contrário do escritor, que envolve o leitor em uma rede de possibilidades verossímeis, o estrategista que usa a mentira como forma de domínio divide para imperar, agregando aqueles que sabem que se trata de um jogo explicitamente falso. Como em um concurso entre pescadores, recebe maior aplauso aquele que consegue contar a maior mentira. Portanto, é desnecessário explicar a piada: o território passa a ser dividido entre claque e cidadãos horrorizados diante da ruptura do pacto de comunicação que deve subjazer o debate político em uma sociedade.

Esse é precisamente o momento que vivenciamos: uma etapa da história em que a salvação do horror depende da nossa resistência aos ataques ao diálogo. Trata-se não somente da nossa sobrevivência física, mas da nossa sobrevivência como sociedade, dado que o diálogo é a base para qualquer convivência. Trata-se de enfrentar a chaga do fanatismo, que historicamente assumiu outros nomes, desde o sebastianismo em Portugal até o messianismo no Brasil. Enquanto o fanatismo não for superado, libertando as pessoas da ignorância, o risco de cairmos nos braços de mentirosos compulsivos será constante. O mentiroso sabe que as pessoas desesperadas não esperam uma explicação, a única saída é o impossível. E a mentira, quanto maior e mais evidente é, mais se torna inalcançável. Contá-la, por meio de palavras que violam a razoabilidade, é alimentar o sonho que, paradoxalmente, a mentira destrói na prática.

É por isso que, como homens saídos da caverna de Platão, temos o dever de retornar à escuridão para desatar as pessoas das convicções tresloucadas e da brutal ignorância que o regime da mentira impõe para dominar os seus cidadãos. Esse também é um sonho, mas com os pés fincados no respeito, no conhecimento e na certeza de que não pode haver civilização na barbárie. Portanto, combater a mentira também é a única saída para os que ainda não foram dominados por esse teatro grotesco. É um sonho realizável, pois sabemos bem que a alternativa à barbárie é sair dela. Portanto, é o único caminho a seguir e a única meta que podemos alcançar. Mentirosos não passarão.

Sobre o autor

Gislaine Marins

É doutora em Letras, professora, tradutora e mãe.

Mais lidas