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Montaigne, devolva o nosso canibal

Há 3 anos
Montaigne, devolva o nosso canibal
(foto por Pixar)

Mais ou menos na época em que Montaigne, na França, fazia a apologia do homem canibal para denunciar a hipocrisia da sociedade francesa, Giorgio Vasari, na Itália, introduzia o conceito de pitoresco na arte. A nossa digressão inicia em meados do século XVI, quando caravelas iam e vinham no Oceano Atlântico, inaugurando o mais consistente tráfico de seres humanos da história e reduzindo o Mercantilismo a um regime baseado no lucro graças à escravidão de massa.

A nossa amnésia histórica deixou-nos o gosto pelo pitoresco e esqueceu-se da lição do canibal. Não que alguns intelectuais não tenham tentado refrescar a memória pátria. Há quase cem anos, Oswald de Andrade retomava com a força vulcânica das rupturas modernistas a ideia de inversão de valores, associando o canibalismo ao poder de transformação que a nossa independência não havia alcançado, por não ter deglutido o seu passado colonial. Precisaríamos de uma segunda Semana de Arte Moderna para, duzentos anos mais tarde, em 2022, tentarmos fazer novamente uma síntese.

Em primeiro lugar eu diria: Montaigne, devolva o nosso canibal. O canibal evidencia com a sua presença periférica, ou ex-cêntrica para usar um conceito quase atual, toda a diferença, mas também a tensão permanente das comunidades excluídas em relação ao centro (Ocidental). Pediria a Montaigne para nos devolver o canibal, pois o centro não precisa ser necessariamente Paris: pode ser a zona sul do Rio de Janeiro ou a zona nobre de São Paulo. Os nossos centros também não enxergam a sua hipocrisia. O centro do Brasil, que pode estar em Brasília ou na Aldeota em Fortaleza, trata o canibal como um elemento da cena pitoresca. Não se espanta que os pistoleiros, digo, agricultores, sejam representados com espingardas nos ombros. O seu ideal rural ficou cristalizado nas aulas de história do ensino primário, embora não tenha entendido bem a diferença entre Entradas e Bandeiras. Voluntariamente, o homem do centro recusa-se a fazer a diferença entre público e privado, a menos que seja contra os seus interesses. Usucapião é direito se o ocupante é grileiro, é terrorismo se protagonizado por movimentos sociais organizados. Sempre tivemos, como se sabe, dois pesos e duas medidas: ao senhor de engenho a liberdade, ao negro a escravidão, ao indígena o genocídio.

Em segundo lugar, eu diria: Montaigne, devolva o nosso canibal. Hoje sabemos que a natureza está esgotada e que a cultura dos povos tradicionais não se chama preguiça, mas sustentabilidade. Por que os indígenas precisam de territórios demarcados? Porque eles não espremem os recursos da natureza como quem chupa laranja. Eles não passam com tratores por cima das suas árvores sagradas e por cima dos cemitérios onde se encontram os espíritos dos seus ancestrais. Os homens de centro também não fazem isso para si mesmos: escandalizam-se por seus símbolos devastados e jamais destruiriam suas próprias casas, mas não têm a menor piedade diante do despejo dos pobres e excluídos. A sua ética é a do individualismo sem descontos e sentimentalismo, como ocorre com os animais – ou talvez pior – pois os animais ao menos possuem o instinto de proteção da própria espécie.

Em terceiro lugar, eu diria: devolva o nosso canibal, Montaigne. Sei que pode parecer tarde e anacrônico esse pedido, mas quanto mais olho para o Brasil, mais vejo entre nós a barbárie que nos arrasta para o espírito colonial, de exploração desenfreada, ausência de princípios éticos e uma ganância sem limites. É preciso um canibal que desnude a hipocrisia dessa gente. É necessário um canibal que não seja visto de maneira pitoresca, que não seja visto pela sociedade com falsa piedade. É necessário um canibal que odeie todas as tentativas de descrição e definição segundo teorias preconcebidas. Um canibal que faça rir Antonio Callado, Darcy Ribeiro e Caetano Veloso.

É preciso um canibal que devore o ódio que nos consome e restitua a tradição de hospitalidade que nos ensinaram. Esquecemos todas as lições. É preciso um canibal que ensine a matemática complexa das estações e a sabedoria geográfica que impede a destruição das nossas cataratas. É preciso um canibal que ilustre a economia da simplicidade e do bem viver, e não a do luxo de viver bem. É necessária uma nova independência, com canibais, negros, mulheres, jovens e demais pessoas periféricas e excêntricas, excluídas e determinadas, amantes da alegria e da esperança, que farão de 2022 não apenas o ano do nosso bicentenário, mas o ano da nossa virada.

Devolva o nosso canibal, Montaigne. O povo brasileiro agradece pelas velhas lições, que ainda são novas para tantos entre nós.

Sobre o autor

Gislaine Marins

É doutora em Letras, professora, tradutora e mãe.