Indicado para todas as raças
Qual não foi o meu espanto quando li no rótulo do xampu: “indicado para todas as raças”. Este não é um texto sobre o racismo, é um texto sobre o espanto.
Antes de qualquer outra coisa, pensei: eu ainda me espanto.
Porém: quanto mais densa a neblina, menos enxergamos. Da mesma forma, a densidade de informação ofusca a nossa visão. O sabão nos olhos perturba a vista. Quando certos problemas aparecem diante de nós, filtramos as soluções de acordo com a nossa capacidade de análise, que pode ser limitada por aquilo que nos afeta pessoalmente: que seja o detergente nos olhos, que seja a cerração no caminho, que seja o excesso de informação não metabolizada.
Se não nos espantamos, como desnaturalizar o racismo que existe entre nós? Como enxergar a neblina dentro da atmosfera densa e perigosa que vivenciamos? Como distinguir com lucidez os caminhos a saguir tendo os olhos ensaboados? Como perceber as palavras entre insultos, discriminação e ódio? Espantar-se, portanto, é necessário para não achar normal o que está acontecendo.
Espantar-se é preciso, viver não é preciso. Dou um exemplo que acontece com frequência: todo racista justifica as suas concepções segregacionistas negando que seja um racista. Para mostrar-se como um bom cidadão, ele compara o seu estilo de vida aos sacrifícios de quem não tem e nunca teve oportunidades para alcançar um padrão digno de vida. O racista não admite que a sociedade impede aos excluídos o acesso às melhores escolas particulares, aos melhores planos de saúde. O racista fala de preguiça, falta de determinação, fatalidade e fracasso. As exceções do sistema ele chama de superação. O racista nem sabe o que diz. Não sabe associar as palavras corretas aos conceitos, navega em um mar de retórica para preencher as suas opiniões. Vive na imprecisão das ideias que lhe convêm.
Por isso, é importante espantar-se, parar e refletir: indicado para todas as raças? Logo descobri, porém, que se tratava de um xampu para animais domésticos. Conto isso para não brincar com as expectativas do leitor. Não voltamos ao triste patamar da institucionalização do racismo, dos ônibus com assentos separados, dos clubes exclusivos, das lojas reservadas a certos tipos de clientes. No entanto, há negros que morrem nos nossos supermercados, há clientes expulsos dos restaurantes, há constrangimento em festas. Basta abrir os jornais para encontrar as notícias. O racismo não existe, mas está entre nós. Quem não se espanta é porque não quer ver.
Espantei-me muito mais, e desta vez por um motivo que não se revelou um equívoco cômico, quando li sobre a reforma do ensino médio que está sendo implantada no Brasil. É uma aberração que clama por justiça social, pelo direito de acesso pleno ao conhecimento.
O programa contempla a ideia de notório saber para o exercício da docência, sem necessidade de formação superior. Pergunto-me onde tais sábios buscarão esse conhecimento notório: nos grupos de whatsapp, nos sites que propagam fake news, nos grupos de estudos guiados por gurus que se dizem filósofos sem terem concluído o ensino fundamental? Qual será o padrão para estabelecer um saber notório? Isso não deve espantar a sociedade?
Espantei-me com o número miserável de disciplinas obrigatórias, com a liberdade de escolha das disciplinas que poderão ou não serem cursadas e com a falta de continuidade entre um curso e outro. O consultor que propôs tal indecência deve ter frequentado os cursos tresloucados do guru da internet. Mas os absurdos não ficam nisso: as secretarias estaduais de educação irão definir os currículos mínimos para as escolas, mas somente as que forem públicas. As particulares poderão definir os seus próprios programas livremente. Haverá certamente pessoas dispostas a pagar para terem um ensino de qualidade. Criamos, portanto, as premissas para uma segregação oficial.
Ainda não chegamos ao ponto de ler rótulos de xampus com os dizeres: “indicado para todas as raças”. É verdade. No entanto, a realidade é espantosa e exige uma contra-reforma. Não podemos achar normal que os estudantes das escolas públicas recebam doses mínimas de ensino e os alunos dos colégios particulares possam escolher o melhor cardápio educacional. Isso é um crime em relação ao nosso futuro, em relação às próximas gerações, em relação ao nosso país. É uma medida que deixa o campo livre à retórica dos racistas, que já professam o individualismo sem freios inibitórios e que agora possuem uma base legal para repetirem os seus disparates. Precisamos de espanto para exigir uma educação indicada para todos os seres humanos e para não naturalizar as discriminações.
Gislaine Marins
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