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O beijo e a berinjela

Há 3 anos
Quais as implicações de uma pessoa ser julgada pela Justiça por roubar uma berinjela?
Quais as implicações de uma pessoa ser julgada pela Justiça por roubar uma berinjela? (foto por Luís Henrique Marques)

Em 2018, depois de nove anos de processo, oito mil euros de custos judiciais e três instâncias, um homem foi absolvido por ter roubado uma berinjela. Podemos resumir assim a história ou ir a detalhes que permitem compreender melhor o que aconteceu.

Tudo começa com um homem desempregado, perambulando por um vilarejo no sul da Itália em busca de lenha para aquecer a sua casa. Pelo caminho, vê uma horta e pensa no filho pequeno, que não tem o que comer em casa. Rouba uma berinjela, cujo valor determinado pela perícia é de 20 centavos de euro. Parece até uma ironia: 20 centavos. Mas não é, está tudo nos autos.

Descoberto pelo dono da horta, é denunciado aos policiais militares da região, que encontram o desesperado a poucos quilômetros com a hortaliça na mão e aplicam o flagrante. Uma vez compreendida a situação do homem, porém, o cultivador decide não levar adiante a ocorrência. Aqui acaba a crônica e inicia o processo digno de um teatro do absurdo. Mas não é, o processo vai adiante.

O homem é processado segundo o princípio da obrigatoriedade da ação penal. O procurador de justiça pede a pena máxima prevista para o crime de furto: seis anos de reclusão. É previsto por lei? É. É justo? A essa pergunta, pode ser feita outra: é justicialismo? A justiça exige um equilíbrio que não admite perseguições. A literatura está repleta de exemplos. Se a nossa história fosse um romance, o título poderia ser Os Miseráveis, de Victor Hugo. Mas não é, e o caso é levado a julgamento.

Qualificado como indigente, o réu obtém o direito de ser defendido por um advogado público, às custas do Estado, é julgado em primeira instância e acaba condenado por furto. Recebe a pena de cinco meses de prisão e trezentos euros de multa. Recorre à segunda instância, na qual o advogado defende a tese de tentativa de furto. É condenado novamente, com uma redução da pena a dois meses de reclusão e cento e vinte euros de multa. A trama incrível nos sugere recorrer a Kafka. Talvez ler O Processo possa ajudar a entender a diferença entre a realidade e a ficção, ou a falta de similitude entre os absurdos da vida e da literatura. Parece mentira, mas não é. A questão vai para a Corte Suprema.

Enfim, a sentença final provoca uma reviravolta. O réu é inocentado. A justiça retoma os ponteiros da balança. Em sua decisão, os juízes da Corte Suprema usam o que na literatura chamamos de metalinguagem, ou seja, discutem não apenas o caso, mas o modo como os instrumentos jurídicos foram usados legalmente para levar a cabo uma série de equívocos judiciais.

O caso da berinjela de vinte centavos custou o equivalente a quatro toneladas do produto, dezoito colheitas, quarenta e cinco mil porções da hortaliça. O processo também demandou tempo, estresse, papel, luz, transporte, protocolo e finalmente o encerramento, incluindo o trabalho de conservação da documentação. A somatória resulta da aplicação da lei, que, no entanto, não foi suficiente para garantir justiça de maneira adequada.

Isso levou a um debate importante sobre o uso do arquivamento e da proporcionalidade das medidas no processo penal italiano. A Corte Suprema também recordou que a justiça já inocentou vários acusados de furto por motivo de necessidade, ou seja, por fome. A jurisprudência tem feito o seu curso para minimizar as injustiças sociais. Aqui acaba a história da berinjela e começa a história do beijo.

Em 1972 um operário foi demitido por justa causa depois de ter beijado uma colega durante o expediente de trabalho. O caso foi levado a processo, enquanto a vida do desempregado era virada de cabeça para baixo em decorrência da demissão. Depois de muitas dificuldades, o operário ganhou a causa e a história virou filme: Beijo 2348/72, de Walter Rogério. Também nesse caso, há dezenas de processos análogos, menos conhecidos, mas não por isso menos dramáticos, que na sua maioria terminaram com o reconhecimento do direito ao beijo, independentemente da condição profissional dos casais.

O beijo e a berinjela: duas histórias com final feliz, que não diminuem a nossa perplexidade diante dos fatos que a realidade nos apresenta. Hoje a serenidade das decisões sensatas parece escassear e respiramos o ar envenenado das torcidas populistas que querem destruir um dos pilares da república democrática. Ávidas de uma polarização banalizada, criam ficções complotistas capazes de abalar até mesmo a ironia de um defunto-autor. Se não tivéssemos o delírio de Machado de Assis, desconfiaríamos que a nossa veia artística resume-se às mentiras mal enredadas que circulam nos porões das redes sociais. O nosso patrimônio artístico e cultural é relevante também por isso: oferece a oportunidade para reconhecer, sem influenciadores e filtros, aquilo que nos engana. A arte permite compreender que na vida real a ética não admite ficção.

Sobre o autor

Gislaine Marins

É doutora em Letras, professora, tradutora e mãe.