O beijo e a berinjela
Em 2018, depois de nove anos de processo, oito mil euros de custos judiciais e três instâncias, um homem foi absolvido por ter roubado uma berinjela. Podemos resumir assim a história ou ir a detalhes que permitem compreender melhor o que aconteceu.
Tudo começa com um homem desempregado, perambulando por um vilarejo no sul da Itália em busca de lenha para aquecer a sua casa. Pelo caminho, vê uma horta e pensa no filho pequeno, que não tem o que comer em casa. Rouba uma berinjela, cujo valor determinado pela perícia é de 20 centavos de euro. Parece até uma ironia: 20 centavos. Mas não é, está tudo nos autos.
Descoberto pelo dono da horta, é denunciado aos policiais militares da região, que encontram o desesperado a poucos quilômetros com a hortaliça na mão e aplicam o flagrante. Uma vez compreendida a situação do homem, porém, o cultivador decide não levar adiante a ocorrência. Aqui acaba a crônica e inicia o processo digno de um teatro do absurdo. Mas não é, o processo vai adiante.
O homem é processado segundo o princípio da obrigatoriedade da ação penal. O procurador de justiça pede a pena máxima prevista para o crime de furto: seis anos de reclusão. É previsto por lei? É. É justo? A essa pergunta, pode ser feita outra: é justicialismo? A justiça exige um equilíbrio que não admite perseguições. A literatura está repleta de exemplos. Se a nossa história fosse um romance, o título poderia ser Os Miseráveis, de Victor Hugo. Mas não é, e o caso é levado a julgamento.
Qualificado como indigente, o réu obtém o direito de ser defendido por um advogado público, às custas do Estado, é julgado em primeira instância e acaba condenado por furto. Recebe a pena de cinco meses de prisão e trezentos euros de multa. Recorre à segunda instância, na qual o advogado defende a tese de tentativa de furto. É condenado novamente, com uma redução da pena a dois meses de reclusão e cento e vinte euros de multa. A trama incrível nos sugere recorrer a Kafka. Talvez ler O Processo possa ajudar a entender a diferença entre a realidade e a ficção, ou a falta de similitude entre os absurdos da vida e da literatura. Parece mentira, mas não é. A questão vai para a Corte Suprema.
Enfim, a sentença final provoca uma reviravolta. O réu é inocentado. A justiça retoma os ponteiros da balança. Em sua decisão, os juízes da Corte Suprema usam o que na literatura chamamos de metalinguagem, ou seja, discutem não apenas o caso, mas o modo como os instrumentos jurídicos foram usados legalmente para levar a cabo uma série de equívocos judiciais.
O caso da berinjela de vinte centavos custou o equivalente a quatro toneladas do produto, dezoito colheitas, quarenta e cinco mil porções da hortaliça. O processo também demandou tempo, estresse, papel, luz, transporte, protocolo e finalmente o encerramento, incluindo o trabalho de conservação da documentação. A somatória resulta da aplicação da lei, que, no entanto, não foi suficiente para garantir justiça de maneira adequada.
Isso levou a um debate importante sobre o uso do arquivamento e da proporcionalidade das medidas no processo penal italiano. A Corte Suprema também recordou que a justiça já inocentou vários acusados de furto por motivo de necessidade, ou seja, por fome. A jurisprudência tem feito o seu curso para minimizar as injustiças sociais. Aqui acaba a história da berinjela e começa a história do beijo.
Em 1972 um operário foi demitido por justa causa depois de ter beijado uma colega durante o expediente de trabalho. O caso foi levado a processo, enquanto a vida do desempregado era virada de cabeça para baixo em decorrência da demissão. Depois de muitas dificuldades, o operário ganhou a causa e a história virou filme: Beijo 2348/72, de Walter Rogério. Também nesse caso, há dezenas de processos análogos, menos conhecidos, mas não por isso menos dramáticos, que na sua maioria terminaram com o reconhecimento do direito ao beijo, independentemente da condição profissional dos casais.
O beijo e a berinjela: duas histórias com final feliz, que não diminuem a nossa perplexidade diante dos fatos que a realidade nos apresenta. Hoje a serenidade das decisões sensatas parece escassear e respiramos o ar envenenado das torcidas populistas que querem destruir um dos pilares da república democrática. Ávidas de uma polarização banalizada, criam ficções complotistas capazes de abalar até mesmo a ironia de um defunto-autor. Se não tivéssemos o delírio de Machado de Assis, desconfiaríamos que a nossa veia artística resume-se às mentiras mal enredadas que circulam nos porões das redes sociais. O nosso patrimônio artístico e cultural é relevante também por isso: oferece a oportunidade para reconhecer, sem influenciadores e filtros, aquilo que nos engana. A arte permite compreender que na vida real a ética não admite ficção.
Gislaine Marins
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