Desculpem, eu errei
Não por acaso um dos pilares da literatura brasileira é Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, de Mário de Andrade. Há muitas coisas a dizer sobre este romance publicado há quase cem anos. Uma delas refere-se à indefinição do seu caráter, sabendo o romancista que a nossa cultura primava pela diversidade e não pela síntese. Parece que é uma boa leitura nessa hora de busca pela nossa identidade como brasileiros.
Nunca soubemos quem somos e como as nossas excessividades – de otimismo e de pessimismo – destroem expectativas a cada passo do nosso caminho. Quando acreditamos, somos traídos. Quando já não acreditamos em mais nada, a realidade persiste em nos fazer existir como se todo amanhã fosse possível. O nosso coração bate ao ritmo das perplexidades. Nosso cérebro não foi programado para o cálculo das questões indecifráveis. Seguimos o instinto cego das paixões e pagamos com a concretude das lágrimas o preço dos nossos equívocos. E, no entanto, sentimos os nossos dedos e percebemos que podem tocar a música da vida, fechamos os punhos e vemos que podemos abrir as mãos. Rimos quando deveríamos estar desesperados e choramos de tanto rir.
É difícil explicar para quem está fora do Brasil o que acontece conosco. Não é comum encontrar quem possa compreender a nossa multiplicidade mutante, incompleta e incompletável. O mistério de Macunaíma é aquilo que pode se aproximar melhor da nossa incompreensibilidade. Podemos ler como prognóstico, como bula e como descrição daquilo que não se explica. É divertido e irritante. É uma síntese do que ainda somos e talvez nunca deixemos de ser.
Pior ainda, tudo o que disse aqui não é nada diante das centenas de páginas impressas para desvendar Macunaíma e posso apenas acrescentar: desculpem, se eu errei.
Errei, mas não menti.
Não minto quando conto que em Macunaíma há uma trajetória de vida e ao mesmo tempo uma viagem: da floresta amazônica à cidade de São Paulo, âmago da nossa modernidade e da nossa tragédia então como agora. Pícaro, hermético, plural, Macunaíma não se deixa desvendar, embora seja desmascarado. É famoso o episódio do Largo do Arouche, onde o personagem afirma ter matado uma capivara, sendo desmentido pelas testemunhas, que afirmam que ele matou um rato apenas. Macunaíma não se envergonha nem pede desculpas. Contrariando as expectativas, diz: eu menti. Macunaíma é desarmante: é o quereres de Caetano Veloso, antes que o tropicalista tivesse tido a ideia de ser o contrário de tudo.
Nesses tempos de reviravoltas, que desafiam a rotação do planeta e a passagem linear do tempo, personagens de carne, osso e descaramento fariam Macunaíma dar uma risada e avoar para a constelação da Ursa Maior novamente. Vivemos a estação em que, sendo a mentira deslavada, tenta-se convencer de que é uma verdade alternativa. É esse o caráter e a mediocridade daqueles que, sem a multiplicidade de Macunaíma, ficaram apenas com o arremedo capenga: caraterzinho, que nos faz sonhar a infinitude do indecifrável herói. Haja capivara imaginária para tanto rato morto na avenida.
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Daniil Kharms foi um autor da vanguarda russa. Visto com suspeita pelas autoridades soviéticas pela escrita livre de condicionamentos ideológicos, foi preso e internado em um hospital psiquiátrico, onde morreu aos trinta e sete anos. O que isso tem a ver com a metáfora de Macunaíma, que inspira uma releitura do Brasil atual?
Kharms escreveu um conto intitulado “De como Kolka Pánkin voou para o Brasil e Piétka Ierchov não acreditou em nada”. Nele, Kolka apresenta um país imaginário, enquanto o leitor, pela visão de Piétka, defronta-se com a realidade. Kolka é teimoso, mentiroso, pueril, coerentemente com o perfil da sua personagem infantil. Decidido a ir para o Brasil, Kolka leva amigo Piétka ao aeroclube da cidade, onde um aviador divertido ao ver a dupla, afirma que pode levá-los ao destino. Enquanto Kolka acredita cada vez mais na sua visão fantasiosa do mundo, Piétka é sempre mais cético. E assim, divididos, e não chegando ao Brasil, desembarcam em um lugar onde os indígenas possuem cabelos loiros. Kolka aprecia a paisagem e afirma com convicção que os pinheiros são palmeiras, que os bisões são vacas e que os automóveis são monstros, já que, segundo ele, não existem automóveis no Brasil. Finalmente, Piétka e Kolka encontram um motorista que solicita informações para chegar a Leningrado. Piétka cai no choro e pede que o homem leve os dois de volta para a cidade. No caminho de volta, enquanto Kolka aprecia as palmeiras inexistentes e condores que não se encontram naquelas planícies, o motorista avisa que estão chegando ao destino.
Kharms inventa um Brasil inacreditável. A comicidade funciona para quem nunca viu o nosso país. Para quem o conhece, funciona ainda mais. O que ninguém esperava é que mais de mais de noventa anos depois, veríamos um Kolka matando capivara no Largo do Arouche.
Mario de Andrade e Daniil Kharms publicaram os textos aqui mencionados em 1928. É uma mera coincidência de datas. As metáforas como chave de leitura da atualidade são apenas uma possibilidade que as obras oferecem. A realidade que vivemos não é somente uma casualidade. É fruto de uma escolha, uma escolha nada difícil, cujo preço estamos pagando e vamos pagar ainda por muito tempo. É o ônus de termos escolhido Kolka para nos divertir. E de termos deixado escapar Macunaíma para a constelação do norte. Que falta nos faz decifrar os seus enigmas e ter clareza para construir os nossos passos rumo ao nosso destino.
Gislaine Marins
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