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Epistemologia não é palavrão

Há 3 anos
Epistemologia: área do conhecimento que estuda a história e os instrumentos para a arquitetura de uma hipótese científica
Epistemologia: área do conhecimento que estuda a história e os instrumentos para a arquitetura de uma hipótese científica (foto por Site Toda matéria)

Se alguém disser “a epistemologia que te carregue” não está ofendendo, está aconselhando. Se a ciência é falível e se qualquer hipótese é uma explicação, mas não é a verdade necessariamente, desprezar a ciência é um erro abissal, daqueles que nos jogam no buraco da ignorância, da mais prosaica burrice, do complotismo, da credulidade instrumentalizada e da ingênua boa-fé.

Anos atrás, passeando por uma livraria de Roma, deparei-me com um título que me deixou curiosa: “Tudo aquilo que você sabe é falso”. Folheei algumas páginas e encontrei uma salada de assuntos que eram colocados em discussão, da AIDS aos atentados de 11 de setembro, do Vaticano às multinacionais. O título era muito bom: assertivo, longo mas com um ritmo binário (em italiano) que se fixa na mente, instigante. O autor se dirigia diretamente ao potencial leitor desafiando o seu conhecimento e prometendo desmontar as suas convicções. No entanto, após ler alguns breves trechos, repus o livro na estante e fui procurar publicações com maior seriedade.

O livro foi um sucesso. Depois do primeiro volume, editaram o segundo e o terceiro volume da série. Publicaram também livros de outros autores que, aproveitando a deixa, escreveram livros como: “Tudo aquilo que você sabe sobre a Sardenha é falso”, “Tudo aquilo que você sabe sobre a alimentação é falso”, “Tudo aquilo que você sabe sobre os homens é falso”, “Tudo aquilo que você sabe sobre a felicidade é falso”. 

Na verdade, o livro é um fracasso. Um livro, qualquer livro, que usa o pronome “tudo” absolutiza, e o absoluto não é do nosso mundo. Nenhum escritor com ímpeto investigativo ou científico poderia cair na bobagem de dizer que tudo é falso, deveria, ao contrário, ir para a epistemologia que o carregue, pois livros assim possuem qualquer coisa dentro, menos o espírito crítico que permite à ciência interrogar-se para avançar com novas hipóteses e novas descobertas.

Epistemologia é uma palavra pouco utilizada no cotidiano. Infelizmente, aparece na maioria dos programas universitários como um curso complementar, a menos que se trate de um curso de filosofia. É uma pena que isso aconteça, ou talvez seja exatamente este o plano para manter na ignorância até mesmo as pessoas com acesso aos níveis mais elevados de educação. Se desconhecemos que a epistemologia é a área do conhecimento que estuda a história e os instrumentos para a arquitetura de uma hipótese científica, se ignoramos que é possível deduzir ou intuir hipóteses observando os fenômenos, se desconsideramos que a realidade sempre pode apresentar fenômenos que extrapolam as hipóteses até hoje conhecidas, aí está a nossa incapacidade para compreender a ciência e a nossa vulnerabilidade para as armadilhas daqueles que afirmam poder explicar que tudo é falso.

Se hoje as notícias falsas disputam espaço com o saber científico e com o simples bom senso, precisamos nos interrogar urgentemente sobre os livros que lemos, sobre a nossa capacidade de leitura dos fatos e das narrações dos fatos, bem como sobre os limites da educação que recebemos. Disso depende a nossa fragilidade para cair em conversa fiada, em textos bem escritos com a pena da retórica e do convencimento, mas que não são científicos e que destroem os melhores instrumentos de análise, naturalizando a imbecilização, como se fosse um fato normal na vida, quando na realidade se trata de uma aberração e de uma doença social que a escola e a sociedade nunca podem desistir de combater.

Se hoje questionamos a eficácia das vacinas sem ser cientistas, se duvidamos da informática sem ser peritos em eletrônica, se discutimos hipóteses sem conhecer epistemologia, não somos livres para afirmar o nosso pensamento, somos apenas tolos. Podemos, claro, querer ou não tomar a vacina, podemos usar ou não o mundo digital, mas não podemos discutir a eficiência dos sistemas desconhecendo a natureza do conhecimento científico e da formulação de hipóteses.

Saber e querer são esferas distintas da nossa experiência: somos livres para querer. O saber, ao contrário, é uma necessidade. O interessante é que quanto mais sabemos, mais o nosso querer é amplo: amplo e livre para decidir. Restam, porém, duas perguntas: se a ignorância é tão vasta, a ponto de determinar o destino e a condição de vida de tantos povos, a quem interessa que o método científico não seja compreendido amplamente? A quem interessa que livros como “Tudo aquilo que você sabe é falso” estejam na lista dos mais vendidos? Às vezes as perguntas são feitas apenas para cativar, vender e confundir. Outras vezes, são feitas para que comecemos a nos interrogar sobre os gatos que nos oferecem no lugar das lebres. As perguntas que faço referem-se a esta última afirmação: interrogar-se é preciso, mas também é preciso saber como perguntar para que não nos transformemos em leitores manipulados.

Sobre o autor

Gislaine Marins

É doutora em Letras, professora, tradutora e mãe.