História desleixada
Quem lembra das gafes de Michel Temer, da dupla Marx e Hegel ao livro sobre Carlos Magno e os cavaleiros da Távola Redonda, sabe que título universitário não é escudo para equívocos. Alguns se enganam por lapso, outros por ignorância e outros por desleixo. Mas uma coisa é certa: diploma não dá inteligência a ninguém. Inteligência é uma capacidade humana, que varia de indivíduo para indivíduo, e declina se não é praticada. Inteligência é necessária para realizar um curso de nível universitário, para o qual se pressupõe a exigência de análise de questões complexas e de decisões difíceis. Mas isso não significa que autodidatas não possuam inteligência, em muitos casos superior à média, e que lhes permite adquirir conhecimentos fora dos circuitos tradicionais de formação e lhes concede capacidade de análise sem que tenham sido sistematicamente treinados para isso em cursos institucionalizados.
Apesar de reconhecer essas possibilidades, a minha responsabilidade exige escrever em claro e bom tom: inteligência é um dom que nos pertence, mas a escola é um instrumento indispensável, que existe para dar os instrumentos corretos a fim de utilizá-la de maneira eficaz. A escola existe para explorar os limites do nosso pensar espontâneo, intuitivo e voraz de exposições palpáveis – ou para usar uma palavra vítima de ataques da ignorância exuberante: sedenta de explicações científicas. Por este motivo, os professores não podem substituídos por influenciadores, capazes de cativar e atrair, convencer e entusiasmar, mas não de explicar os mecanismos de construção de uma argumentação consistente, baseada em dados, fatos, datas, vetores e fatores perturbadores. Influenciadores conquistam fãs, professores ensinam a pensar e a tirar conclusões próprias. É a diferença entre dar o peixe e ensinar a pescar.
O escândalo que precedeu esta edição do ENEM já seria suficiente para perceber que a educação está sob ataque. No entanto, divulgadas as provas, emergiu outra discussão: autores considerados desagradáveis aos governantes acabaram ficando em algumas questões. Falha da censura? Ignorância dos censores? Ou desleixo?
Criador do conceito de cordialidade como traço da cultura brasileira, Sérgio Buarque de Holanda também ressaltou o termo “desleixo” como uma das mais características da língua portuguesa, ao lado de palavras como saudade. Fora dos círculos de estudo, porém, Buarque de Holanda é bastante incompreendido. Em parte a culpa é da popularização de leituras equivocadas que remontam a época da primeira publicação da obra, quando importantes escritores interpretaram a “cordialidade” como sinônimo de “bondade” e não como impulso passional, originado no nosso cego coração, avesso ao rigor cerebral das considerações abstratas. A cordialidade, por isso, seria mais corretamente o avesso à civilidade, ao esforço humano para modelar si mesmo e o seu ambiente de acordo com critérios racionais. A nossa geografia também teria sido influenciada por essa inclinação: por isso os nossos caminhos, trilhas e veredas tendem a consolidar o contorno natural e espontâneo da paisagem, com desleixo, sem a energia necessária para determinar uma direção.
Desleixo é outra velha palavra da nossa língua, cujo radical que reaparece de forma erudita em mecanismos poéticos como o “leixaprem”, a característica de usar aquilo que na liguagem comum chamamos de “gancho”, ou seja: recuperar um elemento de um verso anterior e retomá-lo modificando e ampliando o tema. De fato, leixaprem significa exatamente deixar e voltar a pegar, como um gancho. Desleixo é o contrário: como se percebe no prefixo, desleixar significa abandonar e desleixado é quem abandona em primeiro lugar si mesmo, sem falar do seu contexto e dos outros, pelos quais também se desinteressa.
É cômodo para um sistema que persegue e ataca a escola ser desleixado. O deslize ao mostrar displicente rigor tenta esvaziar as críticas de censura. Ao permitirem questões que falem de Engels, de Chico Buarque (desafeto político do presidente, que se recusou a entregar-lhe o maior prêmio literário da nossa língua, como previsto pelo regulamento) e outros nomes alvos de comentários ideológicos, criam-se as condições para que ingenuamente se atribuam tais escolhas à simples ignorância. A ignorância e o lapso são erros mais fáceis de serem desculpados. O desleixo é diferente: além de fazer parte do nosso patrimônio cultural, do próprio modo como tendemos a interpretar as questões que se nos apresentam, é também visto como uma postura tolerante. Tolerante e esperta, porque sempre útil a ser empregada como benevolência quando na realidade é desregrada e perigosamente suscetível a ser usada como arma, se necessário. Ao agir com desleixo, dá-se uma oportunidade e abre-se uma arapuca: se visto como descuido, pode deixar de ser tolerado a qualquer momento.
O desleixo permite que possa ser visto como pitoresco e folclórico o poder calculado para ser exercido com o menor esforço. Se fosse ignorância, a questão estaria resolvida com um pedido de desculpas e uma mudança de rumos. Se fosse lapso, teríamos o momento de reconhecimento e o esclarecimento do mal-entendido. Podem parecer semelhantes, mas não são. Estamos lidando com o perigoso desleixo político, que lança iscas, deixa-se confundir com falta de conhecimento e afunda as suas garras nas nossas fragilidades intelectuais, para apavorar as nossas boas intenções com o próximo erro que será cometido. A história desleixada primeiro se repete como tragédia, depois como farsa.
Gislaine Marins
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