A fechadura de Caravaggio
Caravaggio deve ter sido o pesadelo de muitos. Genial, incontrolável, passional, provocador: a sua biografia basta para registrar seu nome na história, causando debates e polêmicas. Mas, eu? Por que resolveu entrar nos meus pesadelos? Dos mestres pensamos que é fácil admirá-los, esquecendo que a carga de genialidade pode ser uma pesada responsabilidade para quem decide aventurar-se em comentários.
É que não sou uma crítica de arte, nem sou uma artista. Não sou especializada no barroco italiano, nem nas interconexões artísticas no tempo e no espaço. O meu forte é admirar a tensão dos olhos arregalados, a sedução dos rostos iluminados, o medo das sombras, os contrastes das linhas que dividem as obras em diferentes volumes. Tenho inclinação para confiar naqueles que estudaram intensamente a sua obra e podem explicar com propriedade o que a minha intuição sugere. Tecnicamente, não posso falar sobre a escola e o legado de Caravaggio, mas posso confessar o sussulto do meu coração quando encontro uma obra sua a poucos metros dos meus olhos.
Recentemente foi inaugurada em Roma uma exposição dedicada a um dos seus quadros mais célebres, "Judite decapitando Holofernes". A visita foi tão impactante que à noite Caravaggio continuou a povoar os meus sonhos.
Mas não sonhei com Judite, nem com o gesto enorme que a rainha cometeu para salvar a sua honra e libertar o seu povo. Sonhei com "A vocação de São Mateus", com aquela incredulidade que está no centro da cena. De fato, as personagens representadas no quadro mostram surpresa pela escolha de Jesus, que aponta para Mateus, enquanto ele, distraído, continua a contar moedas. No meu sonho, para meu próprio assombro, o quadro era levado para a sala da minha casa. Sabendo que as dimensões da obra não são compatíveis com a minha casa, a minha racionalidade interrompeu o devaneio onírico, reduzindo o seu tamanho. Mesmo assim, o quadro era grande demais, ocupando uma parede inteira, obrigando a desfazer-me de alguns móveis.
Logo em seguida, a lógica puxou novamente as orelhas do sonho, acordando o medo de que eu pudesse ficar vulnerável mantendo em casa uma obra tão preciosa. Embora dormindo, pensei: preciso colocar mais uma fechadura nesta porta.
Foi então que me senti perplexa, ao entender que não estava frágil por ter Caravaggio em casa, mas por tê-lo na minha alma e no meu coração. Conhecer é carregá-lo para onde quer que se vá. Esse era o ponto iluminador do sonho: no fundo, eu não pensava em Caravaggio, ou não pensava apenas nele. Refletia oniricamente sobre o conhecimento como uma atitude ousada e genial, como uma postura singular no mundo.
Sabia que estava arriscando muito: com Caravaggio dentro de casa ou com o gênio na minha cabeça, conhecer é um grande perigo. No entanto, podemos dizer: é um risco necessário. O conhecimento pode causar temor naqueles que não o dominam, mas também naqueles que percebem a força arrebatadora e libertadora que possui. O conhecimento não pode ser contido por normas preconcebidas, por preconceitos e por presunções. O conhecimento nutre-se de memória e observação, de lealdade e de ousadia em afirmar aquilo que ainda não se sabia. O conhecimento não admite distração, mas tolera os caminhos tortos que nos levam a novas descobertas. O conhecimento é uma promessa que se realiza por hipóteses, mas também um fluxo capaz de derrubar certezas, de abalar poderes, de desafiar as conveniências.
Esse é o motivo de eu ter contado este sonho: Caravaggio invadiu a minha noite para avisar que o conhecimento é importante. Sem conhecimento, Caravaggio estaria morto, soterrado pelo esquecimento e pela ignorância em relação às várias dimensões da arte. Sem conhecimento, a ideia de liberdade, que Caravaggio praticou de maneira radical, perderia o seu sentido. É que somos livres porque temos a coragem de arcar com a responsabilidade de conhecer. Caravaggio talvez exista ainda hoje para que o conheçamos e, dessa forma, conheçamos o sentido do conhecer. Conhecemos para sermos livres e somos livres para e porque conhecemos. Como se Caravaggio nos desse uma fechadura e a nós coubesse encontrar a chave no molho da vida.
Gislaine Marins
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