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Quanto tempo duram as palavras

Há 2 anos
Quanto tempo duram as palavras

Final de ano desperta em mim um sentimento de retrospectiva vasto. Não lembro apenas do último ano, mas da última vida, aquela que tivemos achando que o futuro era uma palavra distante. Quando parecia que bastava decorar uma canção da Legião Urbana para nos convercermos daquilo que achávamos tão certo.

As vacinas, por exemplo. São usadas no Brasil desde o século XIX. Em 1837, tornaram-se obrigatórias, mas foi somente em 1904, tendo por pano de fundo manipulações políticas, que o movimento contra a vacina transformou-se em revolta. A desconfiança durou pouco, como acontece quando a informação é instrumentalizada. Quatro anos mais tarde, em nova onda de contágios causados pelo vírus da varíola, a população adotou comportamento exatamente oposto, aderindo em massa à campanha de vacinação. Há cinquenta anos, em 1971, foram notificados os últimos casos de varíola no Brasil. A doença foi erradicada, as mentiras sobre a vacina ainda não. O passado retornou quando menos esperávamos. E quanto passado! Quanto conhecimento consolidado, verificado pelas estatísticas, demonstrado clinicamente e ignorado pela arrogância e pela manipulação política! Para fugir desse tempo de parvice, é urgente ler e reconhecer os progressos da ciência.

A fome, por exemplo. O nordeste do Brasil atravessou uma seca dramática no ano de 1915. Está tudo narrado no romance de Rachel de Queiroz, O Quinze. No mesmo ano, ocorria o massacre dos armênios no Império Otomano. Isso também está narrado em um romance de Antonia Arslan, La masseria delle allodole (que em português poderia intitular-se: A quinta das cotovias). O que narrativas tão diferentes possuem em comum? Em primeiro lugar, o sentimento de agarramento à vida das personagens representadas, o instinto de sobrevivência que leva à tentativa de fuga, o desespero da fome, a violência que sofrem. No Brasil, a tragédia social foi causada por uma política de isolamento em estruturas construídas com este objetivo específico: evitar que os retirantes chegassem à capital do Estado. Na Armênia, foi resultado da política de nacionalização forçada ou morte nos campos de detenção. Mesmo ano, mesma fome, mesmo confinamento, mesmo desespero. Apenas as distâncias geográficas e geopolíticas permitem entender que a violência possui várias formas, mas uma essência comum: a aniquilação. E não é que a fome voltou? E não é que as políticas se fazem insuficientes e ineficazes, aumentando o desespero das pessoas? O passado deveria ser uma palavra imunizada pelo conhecimento, pela ética e pela dignidade.

O mau governo, por exemplo. Deodoro da Fonseca era amigo do imperador. Proclamou a República com apoio dos conservadores e escravocratas. Traiu o amigo e agradou os que repudiavam o fim do regime de escravidão promovido pelo monarca. São aquelas articulações ardilosas bem descritas por José do Patrocínio, republicano e abolicionista: “Entre os republicanos, que adulavam os escravagistas para fazer proselitismo, e Isabel, a Redentora, ameaçada pela lei de 13 de Maio, eu não podia escolher o posto de combatente. Fiquei lealmente ao meu lado e disse e digo e repetirei sempre: prefiro um trono que liberte, a uma República que escraviza”. Corria o ano de 1896, e a República mostrava na prática o oposto do que tinha animado os abolicionistas. Rebobinemos um pouco mais a fita, porém: já em 1892, José do Patrocínio descrevia a República como uma falsa democracia. Aos cidadãos cabia o direito de conspirar com os detentores do poder, ou servir-se dele como fizeram os generais, aparelhando a constituição. De fato, em 1890, o código penal instituído por Deodoro da Fonseca punia vadios e capoeiristas, desconsiderando não apenas a tradição, mas especialmente a condição social de penúria dos ex-escravos. A lei republicana estava a serviço de uma concepção de organização social segundo a qual fora da escravidão só havia preguiça, farra e desordem. E não é que hoje há quem defenda a regulamentação da escravidão, por meio da desregulamentação das leis trabalhistas, e considere falta de esforço aquilo que na realidade é ausência de políticas de segurança social e de criação de empregos? Em que momento a nostalgia pela avidez escravagista apagou os princípios de ética dos Estados modernos e deixou tão despudorados os membros das classes econômicas que lucram com o subemprego, com a escravidão pura e simples e com a hipocrisia do bom tratamento? Quantas palavras tiveram que ser deslocadas do seu sentido e manipuladas por interpretações maliciosas para que a ideia de escravidão voltasse a embalar o sonho de muita gente que se considera contemporânea do século em que vivemos?

Andrea Doria, por exemplo. Era um transatlântico inafundável. Acabou como o Titanic. Talvez os garotos da Legião Urbana soubessem desde sempre que as certezas são ilusórias, que nunca teremos o mundo inteiro e que os livros só se abrem depois da leitura. Encurtar distâncias entre as palavras e o tempo, entre o desejo e a realidade: pode ser uma forma ativa de retrospectiva, que nutre a nossa experiência e nos dá subsídios para que o futuro não seja apenas mais uma palavra à mercê dos ventos.

Sobre o autor

Gislaine Marins

É doutora em Letras, professora, tradutora e mãe.