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Feministas, qual o quê!

Há 2 anos
Feministas, qual o quê!
(foto por Site Filosofia na escola)

Chico Buarque certamente não precisa de advogados, mas a língua carece de defensores: eis-me aqui. É que antes de ser feminista, é necessário ser um leitor competente.

Antes de falar de feminismo e interpretação, tenho de contar a história de Dante. Aconteceu há alguns anos: eu recebia a mala-direta de uma associação cultural e achava tudo muito interessante, até que um dia recebi um apelo para excluir do programa escolar o estudo da Divina Comédia. Poderia lembrar que tocar no Alighieri, para os italianos, é como questionar a genialidade de Tom Jobim, para os brasileiros. Esclareço, porém, não se tratava de torcida organizada, de tradição ou de credibilidade. A questão era cultural, ou seja, o que me espantou foi a abordagem cultural. E a resposta precisava ser cultural. Ou não seria uma resposta, seria uma opinião.

Segundo os autores do apelo, era indispensável retirar Dante Alighieri dos programas escolares por causa das descrições dos judeus na obra. Para os promotores da proposta, Dante contribuía para estigmatizar os judeus e o único modo para resolver o problema era colocar o livro no Índice dos livros proibidos. Pena que a proposta não era meramente moral, mas tinha a pretensão de representar a reparação de um erro histórico. Ainda mais chocante é que depois de tantos esforços para que fosse abolido o Index adotado pela Igreja Católica para orientar os seus fiéis, uma associação sem qualquer relação com essa tradição fazia o mesmo em nome de uma moralidade cultural.

Pois bem, a literatura não possui moralidade. Moralidade pode ter quem lê, interpreta e contextualiza as obras. Os historiadores também não se baseiam na moral, mas na narração de um tempo, partindo de documentos e outros testemunhos. Como os críticos, historiadores podem cometer equívocos, que podem ser fruto de uma análise incompleta ou parcial, mas uma abordagem moralista não é um erro historiográfico, é um erro de caráter.

Para ler Dante, seria oportuno contextualizar historicamente a obra e recordar, a propósito de judeus, que nos anos que se seguiriam à publicação da obra, a Europa seria vítima de uma grande peste e que, justamente devido à ignorância e ao fanatismo, aumentaram o antissemitismo e as perseguições aos judeus. O que explodiu durante a peste provavelmente já se aninhava na sociedade e Dante não tem nada a ver com isso, pois não escreveu para ser o moralizador dos costumes. Se lêssemos Dante nas nossas escolas, poderíamos escavar os sentidos do verbo judiar, lembrando que vem justamente dos estereótipos usados contra os judeus. Mas isso não significa que não podemos mais cantar o samba de Zeca Pagodinho, “Judia de mim”, que, ao contrário do samba de Chico Buarque, “Com açúcar e com afeto”, é um pedido de perdão, mas nem por isso deixa de conter palavras incômodas para os militantes do identitarismo. Para ler com competência, é preciso saber que no contexto específico da canção do Zeca Pagodinho o verbo judiar não possui nenhuma relação com a histórica perseguição aos judeus. Assim como a maioria esmagadora dos brasileiros, provavelmente Zeca Pagodinho não usou o termo com o objetivo de ofender, não transformou o seu samba em propaganda e não é correto que a crítica faça isso em nome de uma visão identitária do mundo. Correto é informar que o termo pode ser ofensivo e que, se o usamos, conscientes do fato, aí sim, estaremos ofendendo.

Não quero aqui fazer um ataque a todas as abordagens identitárias como se nada tivesse valor, mas lembrar que o limite de uma abordagem está na sua incapacidade de universalizar. Toda vez que uma teoria passa a ser domínio de um grupo, afirmando-se que só mulheres podem falar de feminismo, só negros podem dissertar sobre a negritude, só judeus podem abordar o antissemitismo, abandonamos o campo da discussão científica e abraçamos o campo da ideologia.

Há algo ainda pior e mais descarado que a defesa ideológica, pois as teorias identitárias podem justificar-se como afirmação de discursos minoritários que precisam ser resgatados e recontextualizados para que os sujeitos da história reapropriem-se da sua dignidade. O pior é quando os ataques promovidos têm por objetivo a popularidade, o famoso “falem bem ou falem mal, mas falem de mim”. Não se pode ignorar isso, mesmo porque é uma estratégia de comunicação usada para mobilizar a atenção sobre um determinado tema, impedindo que o interlocutor dedique-se ao que realmente interessa. Penso, por exemplo, nas mentiras que a extrema-direita espalha, exigindo a mobilização por muito tempo para esclarecer os equívocos, enquanto estamos cheios de problemas mais importantes para resolver. É uma estratégia de distração. É proposital. E às vezes pode ser até criminosa.

Não é o caso da canção de Chico Buarque, nem dos contos de fadas dos Irmãos Grimm, nem das peças teatrais de Shakespeare – sim, ele também acusado de antissemitismo. Não é o caso de nenhuma obra literária ou obra de arte, que por sua própria natureza deve representar as várias facetas de um fenômeno, as suas incongruências, a sua dialética, as suas contradições. Se não tiver isso, limitando-se a fazer um discurso positivo, invertendo artificiosamente a realidade para contar algo que nos agrada, não é obra de arte e não é útil. Útil é mostrar a ferida aberta, e perceber todos os lados de uma questão, e saber escolher uma posição como leitor, e decidir repensar o próprio repertório vocabular ao entender algumas dinâmicas que a literatura ilustra e que na vida nos atingem sem piedade. Bem faz a Fernanda Takai ao cantar “Com açúcar e com afeto”, para desespero de quem acredita que as canções devem ser banidas ou reformuladas para se alinharem ao gosto de um determinado grupo social.

Sobre o autor

Gislaine Marins

É doutora em Letras, professora, tradutora e mãe.

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