O plebiscito reloaded
Respeitável público! Hoje vivenciamos o remake de uma comédia de costumes.
“A cena passa-se em 1890”, escrevia Artur Azevedo na abertura do conto “O plebiscito”. Prossegue com uma frase digna do século XXI: “O Senhor Rodrigues palita os dentes, repimpado numa cadeira de balanço. Acabou de comer como um abade.”
Então, como agora, comer era um privilégio e comer muito era uma ostentação. Pena que a comida enche a barriga, não o cérebro. De fato, Rodrigues finge dormir quando o filho pergunta o que é plebiscito. A mulher avisa que dormir depois do jantar pode lhe fazer mal. Obrigado a abrir os olhos e a enfrentar a sua ignorância, Rodrigues defende-se da evidência ridicularizando a ignorância dos demais membros da família. Mas a realidade é que ele precisa fugir para o quarto e consultar um dicionário para não perder a sua reputação. Se na época existissem aeroplanos, chamaria um cirurgião para auscultar as suas tripas e tentar interpretar o seu significado. Afinal, dizem que o intestino é o cérebro de quem age pela emoção.
Na comédia atual, em que somos todos figurantes, o senhor Rodrigues pretende fazer um plebiscito para decidir democraticamente se devemos ou não vacinar as crianças. Parece diferente da comédia de Artur Azevedo, mas só na aparência: de fato, Rodrigues é o Joãozinho-do-Pé-Certo e faz o contrário do que o mundo inteiro está adotando.
Se tivesse lido algo, Rodrigues da nova comédia usaria as mesmas frases do Rodrigues de outrora para justificar a sua contrariedade: plebiscito é “Uma lei romana, percebem? E querem introduzi-la no Brasil! É mais um estrangeirismo!…”. Obviamente, trocaria – e troca – a palavra plebiscito por vacina. O mundo usa? Ora, ora… Os cientistas recomendam? Ah, audácia! Contrariar a pança de Rodrigues, homem coroado pelo povo, amado nas praias, nas ruas e nas redes sociais: é muita petulância. Se Rodrigues fosse o chefe supremo do universo, mandava matar. Uns trinta mil. Pena que já morreram seiscentos mil por patologia. Nem matadores se fazem como antigamente. Delegam ao vírus o papel de capacho e capataz.
Gargalhemos, senhores: em apenas dois anos, milhões de figurantes da nossa comédia viraram cientistas das redes, acadêmicos da internet e coach de geopolítica. Com um celular na mão, qualquer um transforma-se em coadjuvante de Rodrigues na guerra contra o conhecimento. Os néscios defendem que medidas de vida ou morte sejam decididas por aclamação. São os mesmos que riem quando o circo pega fogo.
Enquanto isso, palhaços desmancham a maquiagem numa feição de horror. Sabem que são ridicularizados pelo público. Percebem que o espetáculo ruma para o desfecho, que a barraca corre o risco de desabar e tentam salvar as crianças. Batem continência como se fossem o capitão de um navio naufragando e esperam inutilmente que alguém responda ao comando: crianças e idosos primeiro! Mas os idosos já se foram, levados pela pandemia. Não todos, mas demais para uma tragédia que poderia ter sido evitada.
É o momento dos aplausos finais. A claque ignora os apelos. As praias estão lotadas. A música invade o ambiente. O sol brilha no horizonte. Os loucos falam aos ventos. Os palhaços vestem um jaleco branco. Os mortos de fome não têm voz. Podemos rir à vontade da nossa desgraça. Desçam as cortinas e desliguem as luzes do palco.
“A vacinação para menores de 18 anos contra a Covid-19 vem se tornando uma das questões mais levantadas com o aumento de casos no grupo e com agências sanitárias de diversos países aprovando o uso da vacina para crianças. A Organização Mundial da Saúde, OMS, afirma que os imunizantes que receberam liberação de rigorosas autoridades regulatórias são seguros e eficazes na redução da carga de doenças nesses grupos etários.” A informação está na página das Nações Unidas. Acrescentamos mais este detalhe à guisa de epílogo, bem sabendo que para muitos será apenas um parágrafo a mais, que não mudará uma vírgula das suas convicções infundadas.
Gislaine Marins
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