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Às solas desconsoladas dos meus sapatos

Há 2 anos
Caminhamos para gastar as solas dos sapatos e esse desgaste é o preço a ser pago pela vida
Caminhamos para gastar as solas dos sapatos e esse desgaste é o preço a ser pago pela vida (foto por Pixabay)

O andar ensina arrependimentos. Eles não podem existir sem que erros tenham sido vividos, sentidos, desgastados, recordados, como rastros que um cão fareja onde já não se vê a pegada. Nas solas dos sapatos fica o couro liso, pronto para os próximos deslizes. A vida é, afinal, uma apoteose de equívocos, cuja serventia deve ser aquela de tornar os olhos mais lúcidos, e os dedos mais ágeis, e a boca mais paciente, e os ouvidos mais atentos. Dos pés à cabeça, o corpo envelhece para testemunharmos a erosão das nossas vaidades. E para lembrar: único troféu de uma amarga vitória depois de todos os nossos tropeços.

Espero que seja de contrição o sentimento predominante neste ano, que já se anuncia violento, bélico, dissimulado e disposto a cometer erros maiores do que todos os que acumulamos nesses anos de pandemia, crise e má política. O equívoco e a queda que lamentamos pode ser o impulso para um novo passo, pois nada muda, se nós mesmos não começamos a mudar e a ser a mudança. Assim como não existe caminho se não o abrimos com os nossos passos. Avançar e errar, errar avançando ou errar para avançar, conscientes de que todo caminho é a tentativa de acerto, poderia ser o nosso horizonte. Cair e levantar. Sujar as mãos, tocar as feridas e desinfetá-las. Estender a mão a quem tropeçou à nossa frente. Esfregar os olhos embaçados pela poeira do caminho que fizemos até aqui. Superar o ódio contra os descontrolados. Aguentar os revezes que esfolam a pele e especialmente o nosso coração, como se fôssemos retirantes dos nossos descaminhos.

Nossos altos e baixos tornam-se um programa ser cumprido como uma corrida com obstáculos e revezamento: que estamos todos no mesmo barco e rumamos para o mesmo destino, ainda que individualismos exacerbados nos façam crer que nos bastamos a nós mesmos e que a nossa liberdade está acima da coletividade. Esse peso sobre os ombros é maior do que as nossas possibilidades? Ainda podemos sorrir diante dos desastres que temos às costas e das dificuldades que temos à frente? Como esperar e esperançar, se não soubermos que o acerto é a surpresa para os que tinham ínfimas probabilidades de uma pequena alegria?

Que no balanço final, caminhamos para gastar as solas dos sapatos e esse desgaste é o preço a ser pago pela vida. Não avançamos para vencer, mas porque deve valer a pena a dignidade que colocamos nos nossos gestos: ganhar ou perder, nessa perspectiva, torna-se irrelevante. Porque é inútil festejar a vitória dos maus e participar dos seus banquetes. Assim como é glorioso partilhar as dores dos inermes e desesperados, abandonados por quem nessa Terra tinha a obrigação de proteger a sua vida.

No exame da trágica experiência da guerra, o poeta Giuseppe Ungaretti esculpe versos inesquecíveis que voltam aos meus pensamentos cada vez que me deparo com as minhas próprias dificuldades pessoais: “a morte se paga vivendo”. A morte como prêmio, mas não como uma busca feliz. A morte como testamento das nossas escolhas, do viver para que um dia se possa dizer: valeu a pena, apesar de tudo. Apesar desse epílogo que aparentemente não tem sentido. E, no entanto, é o sentido de tudo, é o que nos liga ao passado, aos nossos ancestrais, à nossa história e às memórias que queremos deixar aos outros.

E assim os meus sapatos vão gastando as solas, consumindo a terra sob os meus pés e vou fazendo os meus caminhos tortos. Talvez por um sentimento íntimo e pouco visível nas dificuldades e nos momentos dos sorrisos escassos: o amor. Amor que animava a alma inquieta de Michelangelo, a alma fabril, que retirava personagens e caráter do mármore e que esculpia palavras como: “em mim a morte, em ti a minha vida / tu distingues e concedes e partes o tempo; / quanto queiras, breve e longo é o meu viver”. Porque não vivemos apenas a nossa vida, mas vivemos na vida dos outros. E viveremos para sempre enquanto memória, amor e perdão estiverem presentes no nosso caminho.

Sobre o autor

Gislaine Marins

É doutora em Letras, professora, tradutora e mãe.