As armas, distantes
Distantes, as armas não deveriam me amendrontar. Não deveriam ser um assunto que me preocupa, que abala a minha vida tranquila, mediana e frequentemente medíocre. As armas não deveriam atrapalhar os meus sonhos, que não são um problema meu e eu não tenho nada a ver com elas. As armas não deveriam entrar no cálculo dos meus projetos. As armas não deveriam me comover. As armas não deveriam entrar na minha casa sem permissão, pelas páginas dos jornais ou pelas imagens na televisão. As armas não deveriam estragar amizades e não deveriam ser motivo de reações descontroladas. As armas não deveriam ser causa do aumento do pão.
Se tudo o que não deveriam causar está acontecendo, as armas não são um meio para alcançar a paz. As armas são um sério problema. Além das vítimas assassinadas e das casas destruídas, as armas estão atingindo a ONU, estão alvejando a democracia, estão derrubando a política, estão abatendo o jornalismo. Ninguém pode se sentir seguro quando teme que até mesmo as palavras estejam sendo usadas para ferir a realidade. Ninguém sabe mais onde se esconder das manipulações. Ninguém mais tem certeza se os coletes à prova de mentira funcionam contra as várias propagandas. Ninguém é capaz de distinguir uma declaração de uma ameaça. Rompeu-se a barreira entre o palanque e o palco: nunca duas palavras sinônimas foram usadas com tamanha desenvoltura e sem restrições contextuais.
Enquanto isso, há quem exija posicionamentos binários: sim ou não, contra ou a favor, de um lado ou do outro. Reduzir a uma lógica digital aquilo que é complexo ajuda a alimentar algoritmos, cliques, engajamentos… e burrice. Virar torcida organizada é cômodo quando esquecemos que as armas que não matam as nossas crianças já colocaram as nossas postagens na mira. A polarização convém aos beligerantes. A paz convém a todo mundo.
No entanto, a paz é trabalho paciente e contínuo. Em geral, requer diálogo e postura intransigente em relação às tentativas de naturalização da violência. A paz não aceita fórmulas fáceis e transitórias. A paz pede compromissos de longo prazo, não se contenta com tréguas. A paz conhece todas as nossas vulnerabilidades, a nossa irritação e a nossa pressa para afirmar aquilo que queremos, em detrimento daquilo que é necessário. Por vezes, a paz se refugia no silêncio.
O silêncio: precisamos de um tratado sobre isso. Precisamos de uma diáletica da escuta. Precisamos de uma tecnologia da leitura dos espaços vazios que se criam entre as diferentes posições. Devemos revalorizar o silêncio reservado às vítimas e aprender a escavar o sentido daquilo que não conseguimos transformar em palavras. É necessário lembrar que entre as várias manifestações do horror estão os nossos olhos assustados e as nossas bocas paralisadas pelo injustificável: são silêncio significante. É importante respeitar o silêncio dos que rejeitam os maniqueísmos e daqueles que são linchados por ousarem ir além das razões opostas.
A paz e o silêncio operam na invisibilidade, na transformação lenta dos corações. A paz é uma revolução gentil e melancólica. Não tem ilusões de que a bondade seja uma vitória intuitiva e natural. A bondade é uma escolha que exige sacrifícios, não é uma tendência, não é uma característica. Ninguém nasce bom, como ninguém nasce mau. É preciso viver e escolher. É imprescindível aprender que se erra muito tentando fazer a coisa certa. Erra-se ignorando a guerra, erra-se achando que as armas estão distantes, erra-se quando falamos e erra-se quando calamos. Mas jamais erramos por tentarmos esclarecer uma dúvida. E jamais erramos quando tentamos dar uma chance à paz.
Gislaine Marins
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