Do intestino a Dostoiévski
Realmente, fizeram das tripas coração. E os intestinos, que alguns consideram o nosso segundo cérebro, passaram a ser o centro da nossa emotividade arrebatada pelos ventos da guerra. Intestino como metáfora: órgão que absorve nutrientes, filtra e descarta o que não presta ao corpo. É nessa moldura semântica que nunca canso de ler um conto magistral de Rubem Fonseca: “Intestino Grosso”.
A narrativa nunca menciona as tripas. O que se conta na história é a realização e a publicação de uma entrevista com um escritor que frusta reiteradamente as expectativas do jornalista. Ao quer questionado sobre a existência ou não da literatura latino-americana, o escritor responde: “só se for na cabeça do Knopf”. É uma referência, provavelmente, aos editores estadunidenses Alfred e Blanche Knopf, que se tornaram célebres por publicarem escritores latino-americanos, mas também asiáticos e europeus.
O jornalista sintetiza a sua perplexidade ao descrever a gravação como uma espécie de “Diálogo dos Mortos” ao contrário: uma alusão ao escritor Fénelon, que fazendo dialogar personagens do passado, usava esse artifício para fazer uma reavaliação da sua própria época. Mesmo assim, o material é levado ao prelo e o escritor é informado sobre o número de palavras que usou e sobre o valor a ser recebido pela entrevista. A ligação termina com o escritor que, sem se deter em cortesias de ocasião, bate com o telefone na cara do jornalista. “Esses escritores pensam que sabem tudo”, diz o jornalista. “É por isso que são perigosos”, conclui o editor.
Intestino: quando fazemos das tripas coração, as palavras dos escritores amedrontam a ignorância e a nossa incapacidade de ir além de extrapolações binárias. No coração do Ocidente – talvez porque esteja dominado pela paixão dolorosa dessas horas – os primeiros efeitos colaterais do conflito em curso são vistos em clamorosas censuras. Começam a pipocar os cursos anulados, as exposições canceladas, as exibições cinematográficas retiradas do cartaz por retaliação política. Como se os escritores fossem incômodos devido a um passaporte e não pela força das próprias obras. Como se Dostoiévski pudesse ressuscitar para retificar os seus romances e transformá-los em um panfleto do populismo.
Os escritores realmente são perigosos: nem a democracia (em crise) é capaz de fazer as devidas distinções. Lidando mais com a matéria intestinal, com os labirintos do corpo e com os descaminhos das nossas paixões, hesitações e impulsividades, quem escreve é – ao contrário do que se possa acreditar – mais propenso às dores humanas do que às ideias abstratas e aos cálculos políticos. Os escritores não salvam e não condenam ninguém e, no entanto, as suas palavras, assim como as imgens dos artistas e as sequências dos diretores cinematográficos, ficam nas bibliotecas, nas pinacotecas e nas cinematecas como utopia das histórias que não tiveram um espaço real, um tempo real, um julgamento real, uma decadência real, uma tragédia real. Nisso está toda a potência da palavra, que não possui tempo nem espaço, nem materialidade, nem prazo de validade. E apesar disso é capaz de conservar memória e sugerir roteiros para o futuro.
Os escritores são perigosamente libertadores. A palavra literária não tem passado, embora tenha. E possui futuro, ainda que nada garanta que seja conservada. Os escritores, por isso, desafiam tudo: os poderosos e os censores, os moralistas e os ignorantes. Desafiam o fogo, os arquivos, a hipocrisia: uma ousadia inaceitável para os que acreditam que um mundo complexo e multipolar possa voltar a ser simplificado em posições binárias, jogando as pessoas umas contra as outras. E todas contra a paz.
Pobre mundo que censura os seus escritores. E que teme os escritores alheios. Não sabe que a literatura não pode representar o poder e acredita que os livros podem criar um exército de prosélitos. Antes fosse assim! Os escritores seriam poderosos e não receberiam míseros direitos autorais. A ignorância teria os dias contados e as vítimas inermes dos poderosos no mundo teriam a força de uma utopia e não as vãs promessas de um futuro incerto.
A realidade, infelizmente, é bem mais prosaica e hipócrita. Os escritores escrevem para poucos, fazem da escrita um sacrifício intelectual e monetário, mas acabam sendo os primeiros a serem boicotados. É que o poder talvez nutra a intuição de que a fragilidade quase heroica dos escritores seja uma força impalpável e que nada possa controlá-la.
Gislaine Marins
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