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Ninguém merece ser feliz

Há 2 anos
". Felicidade é uma capacidade de colocar os olhos em uma determinada situação e experimentar uma emoção satisfatória."
". Felicidade é uma capacidade de colocar os olhos em uma determinada situação e experimentar uma emoção satisfatória." (foto por Luís Henrique Marques)

De repente, o corredor de galhos espetados no céu nublado do inverno se transforma em um vestido verde vaporoso. As folhinhas, quase transparentes de tanta novidade, parecem recobrir uma esposa antes do sim: ninguém merece ser feliz.

Atravesso a avenida Merulana e penso em Epicuro. Para que buscar a felicidade? E como? Felicidade é o fim da história, como um conto de fadas, ou é um percurso? É uma conquista ou é uma condição interior? Qual seria o melhor momento, senão o do convicto pessimismo, para desafiar as perspectivas e inventar uma primavera secreta criando barreiras ao mal que nos rodeia?

Não, a felicidade não é mérito. Não é uma medalha que recebemos pelas nossas boas ações. Não é resultado de esforços, não é sorte, não é tendência. Felicidade é uma capacidade de colocar os olhos em uma determinada situação e experimentar uma emoção satisfatória. Às vezes a felicidade pode ser contida, às vezes pode ser melancólica. A gente fica feliz por ter escapado de um perigo ou por saber como resolver um problema. Felicidade é a chave mestra para as portas fechadas. Quando não temos nenhuma ferramenta, a felicidade pode ser uma esperança abstrata: força irracional de apego à vida. Não é uma recompensa.

A felicidade precisa ser buscada dentro de nós, desvendada após escavarmos os cantos mais escondidos do nosso coração. A felicidade é uma pesquisa arqueológica nas nossas experiências. Cavouca nas nossas memórias, nas nossas leituras. Tira de nós a força para ir em frente, do jeito que dá, de acordo com as circunstâncias e as oportunidades. Às vezes, a felicidade é ler. Pode ser saborear um prato de comida quente. Pode ser uma coberta. Pode ser um porto onde atracar. Ou saber que há futuro além dos sonhos.

E depois do sim à possibilidade de ser feliz: o ciclo. Com o passar das semanas, as folhas que formam um túnel de sombras refrescantes ficam cada vez mais robustas, cada vez maiores, cada vez mais intensas. Irão dominar completamente a paisagem urbana, majestosas. A contemplação é um gesto impotente: e podemos ser felizes sem mover um dedo, sem arrancar uma folha, sem derrubar uma árvore. As folhas cairão sozinhas, no momento devido. Antes veremos os frutos no chão, das flores que não vimos, ofuscadas pelo verde arrogante como uma juventude que acredita ser invencível. E no entanto, cada setembro anuncia uma esperança nova, uma germinação, um trabalho coletivo de abelhas, passarinhos, insetos, sol, vento, água. A noite, para fazer brotar.

Não foi somente o manto vaporoso da avenida Merulana que eu vi esta semana. Vi também, arrebentando o meio-fio da rua onde moro, entre a calçada e a rua, um oleandro. O arbusto é muito comum na cidade e nesta época começa a florescer e a colorir os parques. Eu não esperava que brotasse espontâneo em um lugar tão hostil para as plantas. Mais do que isso: não imaginava que resistiria ao instinto de destruição, por vezes chamado de limpeza, que leva as pessoas a arrancarem qualquer coisa verde que ouse desafiar o asfalto. Mas o oleandro ali está: verde, prometendo flores, veneno e cura. É uma planta linda e perigosa, conhecida pela toxidade, mas também pelas propriedades farmacológicas.

A felicidade nada tem a ver com isso: com árvores, com plantas, com primavera, com abelhas ou com insetos. Emerge muito mais como reação ao nosso conhecimento e à nossa sensibilidade educada para ver as coisas de uma certa forma. Por isso, nas maiores adversidades, podemos ser mais felizes, se buscamos compreender o mundo que nos rodeia. Por isso podemos ficar menos desesperados, se reinventamos uma nova história depois do final da anterior. É melhor não buscar a felicidade, é melhor não acreditar que a felicidade existe por merecimento. É melhor dar sentido ao que vemos e ao que fazemos e descobrir, de repente, que isso nos deixa felizes. É melhor viver e fazer aquilo que acreditamos realmente. Quem sabe assim poderemos dizer que alguma felicidade houve, porque veio à tona no nosso sorriso e esquentou o nosso coração, apesar dos tantos revezes que a vida nos apresenta.

Sobre o autor

Gislaine Marins

É doutora em Letras, professora, tradutora e mãe.