A cultura da demolição

“Bem que podiam pôr abaixo esses escombros e construir um shopping. Imagina, no centro, bem ao lado do Coliseu. Seria um sucesso”.
Conta a lenda que a proposta de demolir o Foro Romano, um dos patrimônios da humanidade, tenha sido realmente dada por um brasileiro a um guia turístico que acompanhava um seleto grupo de compatriotas para admirarem as ruínas da Roma Antiga. Ou, como teria dito o turista em questão, “os escombros”.
Quem me contou a história afirma que o guia ficou horrorizado com o comentário totalmente desprovido de ironia. É que para os europeus, em especial para os italianos, que detêm um percentual altíssimo de sítios arqueológicos, prédios tombados e obras de arte, derrubar e destruir são palavras proibidas. Demolir é verbo defectivel: não pode ser conjugado no presente e muito menos no futuro.
Entre nós, Caetano Veloso já tinha cantado a pedra em Circuladô, aquele álbum fantástico e que conseguiu ser tão essencial quanto o anterior, Estrangeiro. Na faixa de abertura, Caetano escandia “Aqui tudo parece construção e já é ruína / o asfalto, a ponte, o viaduto ganindo pra lua / nada continua”: sempre estivemos Fora da Ordem. Fomos excluídos do bem-estar prometido pelas mais variadas teorias, pois a nossa história, com raras exceções, foi escravocrata no mercantilismo, exploradora no capitalismo, empobrecedora no neoliberalismo. A inclusão reinou entre nós como sonho social, a educação resistiu como utopia, a estética restou como um luxo.
Fomos excluídos da beleza, da cultura da conservação e do reconhecimento do valor artístico. Como reconhecer a importância de um monumento em um país onde esquecemos, apagamos, ocultamos e relativizamos o nosso patrimônio? O que dizer de um país que retira do panteão personalidades afrobrasileiras e que, por ideologia de poder, têm seu papel histórico e cultural institucionalmente cancelado? O que dizer das administrações que autorizam o fechamento de bibliotecas – como temos visto nos últimos anos – ou que permanecem inertes diante da demolição de prédios com história e cultura em nome do direito à especulação imobiliária e da liberdade individual acima de qualquer razão coletiva, bem comum, cultural ou histórico?
Logo no início da Revolução dos Cravos, em Portugal, a escritora Sophia de Mello Breyner Andresen, em entrevista radiofônica, sublinhava que “nenhuma democracia real é possível enquanto não houver uma plataforma comum de cultura a que todos os homens tenham acesso, porque a cultura não é só saber, não é erudição, é uma educação do homem para a consciência”. Ressaltava ainda a importância de os livros infantis serem esteticamente bonitos. Não é suficiente que sejam bem escritos, é preciso que encantem pelas imagens. Ia além, afirmando um país deveria pensar na construção de casas populares bonitas, pois a beleza é uma necessidade interior, não é um luxo e um ornamento: “a beleza é para estar na rua e na casa de cada um”. Enfatizava: o custo de uma casa feia e de uma casa bonita é o mesmo.
Esta semana soube da demolição da casa de Caio Fernando Abreu, em Porto Alegre. É mais um exemplo da cultura de demolição que vivenciamos. Isso entristece, assim como entristece o turismo predador, incapaz de fazer-se tocar pela beleza da arte e da história. Quando pessoas com a cultura da demolição circulam pelo mundo – quem sabe tirando proveito dos seus negócios prosaicos, sem poesia e sem maiores aspirações humanas, além do puro prazer de exibir privilégios financeiros – vemos aquelas cenas desoladoras, como os nomes escritos nas paredes dos monumentos ou mesmo a destruição pura e simples, por um prazer irracional de domínio sobre a matéria, de obras que são um patrimônio não apenas seu, mas de toda a humanidade. Então realmente não me espantaria que a história do turista brasileiro que sonhava um shopping ao lado do Coliseu fosse verdadeira. E não duvido que turistas de outros países ou até mesmo italianos alijados do acesso aos seus tesouros artísticos possam ter ideias excêntricas como essa.
Lembro de um episódio, logo que comecei a ensinar na Itália. Havia uma turma de jovens que deveriam ir fazer o serviço civil no Brasil. Então pedi que preparassem uma pequena descrição de lugares bonitos das suas cidades. Um deles respondeu prontamente: “não tem nada de bonito onde eu moro”. Achei que era um dos rapazes vindo de alguma pequena cidade, que são sempre interessantes, mas não possuem a monumentalidade de Roma. Para meu espanto ele morava exatamente aqui, na Cidade Eterna. Mas não era capaz de ver a beleza, porque morava em uma periferia como aquela que mencionava Sophia de Mello Breyner Andresen: uma periferia que mais de uma vez foi objeto de estudos, mas que até agora não vê uma requalificação que restitua aos seus moradores a dignidade que aspiram. Algo foi realizado em termos urbanos: foi construído um grande teatro, inaugurado anos atrás por Leonardo Di Caprio. Mas restam os prédios tristes, os ângulos retos, as poucas árvores, a pobreza, as praças quase nuas.
Penso nisso e vejo que em todo o mundo temos periferias culturais e temos pessoas excluídas do direito essencial à beleza. Isso não me torna, porém, mais resignada, como se a mezela de um fosse motivo para não lamentar a mezela de outro. Fechar bibliotecas, destruir a reputação de personalidades da cultura, demolir prédios e apagar a memória é um crime em qualquer lugar. O que fizeram com o Caio Fernando Abreu é um gesto de desprezo: não apenas em relação ao Caio, mas em relação a nós, à nossa capacidade de dar valor àquilo que produzimos para ir além do instinto de sobrevivência, de desejar mais do que um simples teto sobre a cabeça, como dizia a escritora portuguesa. Caio Fernando Abreu aí está, nos seus livros, mas nós ficamos um pouco menores hoje. Perdemos um pouco de beleza, perdemos um pouco de direitos àquilo que nos torna diferentes dos demais animais: criar arte, conservar a arte, valorizar a arte. Quando demolimos, fazemos emergir o nosso instinto animalesco e irracional. Basta olhar no espelho: não ver e não se ver.

Gislaine Marins
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