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Um ano de dominação fascista

Há 2 anos
Nos anos 1940, fascismo de Mussolini levou a Itália à tragédia completa da Segunda Guerra Mundial
Nos anos 1940, fascismo de Mussolini levou a Itália à tragédia completa da Segunda Guerra Mundial (foto por Twitter)

Em 1923, o deputado italiano Giacomo Matteotti publicava um relatório detalhado sobre a situação da Itália sob Benito Mussolini. Poucos meses mais tarde seria assassinado.

O relatório sobre as atividades, os gastos e a política de governo adotados são descritos de maneira minuciosa e comparados com os efeitos e as estatísticas consequentes. O autor cita discursos, mostra as incoerências dos decretos que traem as promessas feitas e apresenta os resultados concretos, com um aumento vertiginoso da censura nas universidades, cooptação da classe trabalhadora e violência disseminada por meio dos esquadrões fascistas. Mas é na descrição dos eventos que o relatório revela a dimensão da violência disseminada no país. A título de exemplo, transcrevo as principais informações relatadas sobre o primeiro mês abordado pelo relatório.

Em novembro de 1922, assinala o documento, duas pessoas são assassinadas em um parque público por armas de fogo. Uma pessoa é apunhalada. O pai de dois socialistas é assassinado com um tiro de espingarda ao se apresentar diante de fascistas que procuravam os filhos na sua residência. A assembleia dos padeiros é interrompida por um esquadrão que obriga os presentes a se inscreverem no sindicato fascista. Os fascistas destroem uma farmácia, impõem o fechamento de lojas e impedem que um comitê realize um monumento em memória de um deputado assassinado por fascistas, é claro. Um deputado representante dos pequenos agricultores é agredido. Outro socialista é assassinado com um tiro no coração ao discutir com alguns fascistas. Um professor é obrigado a engolir uma grande quantidade de óleo de rícino. Mesmo tratamento é reservado a um barbeiro. Um líder católico é procurado pelos fascistas, como não é encontrado, espancam a sua mulher. Um funcionário alfandegário é obrigado a beber óleo de rícino por ter testemunhado em um processo para apurar as causas do homicídio de dois socialistas. Outro deputado é cercado por um grupo de fascistas e espancado. Um secretário político é sequestrado, espancado e obrigado a beber óleo de rícino. Dois círculos socialistas são incendiados, assim como duas cooperativas. Um círculo cultural é vandalizado e incendiado. Um jornal é advertido de que não pode dar espaço aos socialistas. Sete fascistas acusados de homicídio e lesões são absolvidos. Durante uma viagem de trem, um casal é agredido por desconhecidos. Seis pessoas morreram durante um conflito em uma cidade cujo prefeito não aceitou renunciar e entregar o mandato aos fascistas. Um operário é ferido violentamente a pauladas. Um vereador é ameaçado e obrigado a não se opor aos fascistas. Vários fascistas são retirados da prisão por correligionários. Um médico é alvo de invasão e revista do seu domicílio. A bandeira da Sardenha é queimada por não ser exposta ao lado da bandeira italiana. Um político é assassinado ao voltar para casa de bicicleta. Um anarquista é espancado. Uma cooperativa é vandalizada. Um salão de baile é invadido por fascistas: os homens são expulsos a golpes de espingardas e cassetetes. Outros fascistas são absolvidos de homicídio. Uma joalheria é invadida e o proprietário é obrigado a ingerir óleo de rícino. Um socialista é espancado. Dois ferroviários são espancados e obrigados a beber óleo de rícino. Uma professora é obrigada a beber óleo de rícino por não ter participado de um desfile fascista. A casa de um professor é alvo de tentativa de invasão por não ter tirado o chapéu ao ouvir o hino. Um operário é assassinado por fascistas, antes de morrer consegue denunciar o nome dos assassinos, mas as autoridades ignoram o fato. Uma Câmara de Vereadores é obrigada a renunciar. Dois populares são espancados na rua. Um operário é agredido e jogado em uma fossa, quebrando uma perna. Um ex-prefeito é obrigado a beber óleo de rícino, assim como um operário. O proprietário de um sítio é obrigado a beber óleo de rícino. Um agricultor é morto e o seu filho fica ferido gravemente. Um popular é morto a cassetadas ao tentar votar. Um vigário é obrigado a beber óleo de rícino. Uma Câmera de Vereadores é interditada e dois vereadores são obrigados a beber óleo de rícino. Uma pessoa é obrigada a beber óleo de rícino e é espancada por ter denunciado as violências fascistas. Outra sede socialista é invadida e incendiada, vários membros são obrigados a beber óleo de rícino, a administração municipal é obrigada a renunciar. Invadem a casa de um deputado e tentam obrigar a esposa a beber óleo de rícino, mas ela se revolta e quebra a garrafa. Outra pessoa é obrigada a beber óleo de rícino. Dois socialistas são espancados, outros dois são atingidos por tiros. Outros três são espancados e obrigados a beber óleo de rícino.

O relatório continua denunciando os crimes dos esquadrões até novembro de 1923, com o mesmo nível de detalhe do primeiro mês, acima sintetizado por razões de espaço. Mas o ponto culminante ocorre no ano seguinte, quando Matteotti denuncia o clima de violência que caracterizou as eleições. Aos colegas que o parabenizaram pelas palavras pronunciadas no Parlamento, afirma-se que Matteotti teria dito: “o meu discurso eu fiz, agora comecem a preparar o discurso para o meu velório”. Que tenha ou não sido dita extamanete dessa forma, o fato é que hoje é atribuída ao corajoso político, também graças ao filme “O delito Matteotti”, de Franco Vancini, no qual é recitada. Matteotti foi assassinado dez dias depois de fazer o discurso sobre as eleições.

Matteotti provinha de uma família abastada, tendo tido acesso às melhores oportunidades de estudo na época. A sua região de origem, porém, era extremamente pobre e um terço da população emigrou para a América do Sul em busca de melhores condições de vida. As denúncias de Matteotti tinham a marca da precisão do homem culto e da sensibilidade do homem incapaz de ignorar injustiças.

A relação dos crimes aqui elencados, referentes ao mês de novembro de 1922, foi elaborada apenas nas linhas genéricas: o documento original apresenta nomes, locais dos assassinatos e outros detalhes que, ao longo de cerca de cinquenta páginas, revelam um ano de horrores negados pelo fascismo, a sistematicidade dos meios de violência empregados, o modus operandi, que não permite considerar as violências e os assassinatos como fatos isolados. Matteotti mostra que a violência não acontece por acaso e não ocorre sem conivências.

Ele conclui o relatório cronológico, afirmando: “Hoje o ilegalismo tornou-se um fato permanente que, especialmente em algumas áreas da Itália, substituiu qualquer lei e qualquer garantia e órgão da lei, impondo-se aos cidadãos com violência ou até mesmo com ameaças. Aquilo que, especificamente e sobretudo nos municípios rurais, pode ter acontecido, com a cumplicidade aberta das autoridades governamentais, para subjugar os cidadãos que legitimamente resistiram, revela-se de maneira clara no caso de Molinella, um pequeno município com menos de 15 mil habitantes, na Província de Bolonha”.

O caso de Molinella, ilustrado separadamente no relatório, conclui-se com a afirmação de que todas as violências foram suportadas sem rebelião e nenhum abuso denunciado às autoridades foi punido. Essa é a atualidade do legado de Matteotti e do seu sacrifício em prol da democracia: mostrar que a escalada de violência não ocorre em um vácuo, mas é uma dinâmica de disputa de poder. A violência ocorre onde o poder legítimo está enfrequecido ou onde o poder é conivente. A violência enfraquece a democracia: não é apenas um problema de segurança ou uma fragilidade social, mas comporta efeitos políticos.

Os protestos pelo homicídio de Matteotti nunca foram esquecidos, assim como a comoção popular causada pela sua morte injusta. Os protestos parlamentares são lembrados até hoje como a “secessão do Aventino”, expressão usada para indicar a abstenção de massa de um grupo parlamentar contra uma medida considerada inaceitável. Apesar disso, o fascismo continuou alastrando-se nos anos seguintes até levar a Itália à tragédia completa da Segunda Guerra Mundial.

A história deveria servir para isso: evitar que casos análogos se repetissem. Deveria ser útil para que cada cidadão e cada instituição assumissem a própria responsabilidade diante das consequências que o conjunto de “casos isolados” podem causar em uma sociedade. Deveria ser assim. Esperemos que seja, visto que a história está contada.

Sobre o autor

Gislaine Marins

É doutora em Letras, professora, tradutora e mãe.