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A trégua do Natal

Há 2 anos
Em algumas frentes da Primeira Grande Guerra, os soldados trocaram votos de boas festas, partilharam as rações, organizaram jogos
Em algumas frentes da Primeira Grande Guerra, os soldados trocaram votos de boas festas, partilharam as rações, organizaram jogos (foto por Bola parada)

No Natal de 1914, e nos dias que antecederam a celebração de 24 de dezembro daquele ano, as tropas inglesas e alemãs, em conflito, começaram uma trégua que não tinha sido anunciada ou determinada oficialmente. Por se tratar de iniciativas não organizadas, o modo como a trégua ocorreu variou de um local para o outro ao longo da linha de batalha. Em algumas frentes, os soldados trocaram votos de boas festas, partilharam as rações, organizaram jogos. Foram unânimes em um aspecto: todos silenciaram as armas por algum tempo para sepultarem os mortos de ambas as partes.

Os ritos de morte, o destino dos homens, as solenidades de adeus são momentos de passagem que todas as culturas exaltam e que a literatura registra para que as pessoas compreendam a sua universalidade e a sua importância no ciclo da vida. Já na Ilíada, de Homero, há amplas descrições dos funerais em vários cantos. Quando morre Pátroclo, que estava na guerra usando a armadura de Aquiles, este cai em um estado de luto profundo, corta os próprios cabelos – um símbolo de força para os gregos – e deseja ser sepultado com o amigo. A perda é solenemente celebrada por meio de lamentos, mas também de competições, uma olimpíada, que representa de fato uma trégua, além de ser um momento de veneração das divindades. Apesar da profunda dissensão entre os combatentes, a morte detém a luta momentaneamente, para dar espaço às homenagens.

Não por acaso, os sistemas jurídicos costumam prever lutos oficiais – respeitados por uma coletividade –, bem como a concessão de licença individual – segundo o grau de parentesco com o falecido e a cultura do país. A morte não é apenas a despedida da vida, mas a última oportunidade que os vivos possuem para fazer o balanço da relação com a pessoa falecida: como foi a sua vida, quais foram os seus méritos, qual é o legado que deixa, qual é a falta que faz e que fará.

Há uma etiqueta para tais ritos, que variou ao longo do tempo e difere de uma cultura para outra, mas a morte é sagrada para todos. É o momento derradeiro. Para muitos, a exterioridade da dor é representada pela roupa escura, pela ausência de acessórios, em sinal de despojamento, pelo corte das próprias roupas como sinal de afeto e desinteresse pelas coisas terrenas, pela atenção dada aos que vêm prestar condolências ou pelos cuidados reservados à família enlutada. Via de regra, a dor deve ser acompanhada pela busca da sobriedade.

Visitando recentemente as ruínas de Paestum, na chamada Magna Grécia, tive a oportunidade de conhecer o depósito do museu, onde se encontra a maioria das peças, pois o espaço expositivo é bastante limitado em relação às descobertas realizadas ao longo do tempo. A maior parte do acervo é formada por lápides afrescadas, que relatam a vida de cada defunto e as honras que recebeu por ocasião da sua morte. Chamou a minha atenção a sepultura de uma mulher: o homem não chora, para não demonstrar vulnerabilidade, mas há uma outra mulher que chora, provavelmente a pedido do marido, para que a dor seja devidamente exteriorizada, em sinal de respeito pela falecida.

Todos esses exemplos voltam à mente neste momento em que, independentemente da opinião sobre a soberana do Reino Unido, cinco centenas de chefes de Estado e de governo estiveram no país prestando a última homenagem à rainha em nome das populações que representam. O nosso presidente também esteve no funeral. Não foi uma passagem bonita, não esteve à altura da nossa boa educação, não respeitou o protocolo, ignorou a cultura e a tradição.

Não espero que nessa altura da vida a lembrança dos fatos históricos da I Guerra Mundial possam sensibilizá-lo, nem tampouco poderão demovê-lo os episódios da épica clássica, ou a praxe jurídica, ou a etiqueta, ou a arqueologia. No entanto, o povo pode soberanamente escolher quem o fazer representar. E por acaso essa oportunidade se apresentará aos brasileiros daqui a poucos dias. Alguém, nessa pluralidade complexa que é a população brasileira, talvez veja este texto, talvez tenha interesse nos fatos da história, na literatura, na cultura, no protocolo. Talvez para esse alguém possa ter algum interesse o fato de um funeral representar uma trégua, o fato de que os mortos devem ser enterrados em um clima de respeito e comedimento.

Não tenho receita para ninguém, apenas faço votos de que tenham olhos para ver, memória para lembrar, discernimento para escolher. Tudo mundo erra, mas, como professora, costumo recordar que ter às costas variados exemplos reduz a nossa possibilidade de cometer graves equívocos. É que a morte talvez perdoe, a vida, não. O funeral acabou? Voltemos à realidade. O futuro está diante de nós, nas nossas mãos.

Sobre o autor

Gislaine Marins

É doutora em Letras, professora, tradutora e mãe.