Gandhi e o livro roubado
Mais uma vez os livros. Mais uma vez a violência. Não é falta de assunto: é relevância. Então vou contar. São duas histórias.
A primeira é uma história que não aconteceu com Gandhi. Em 2004, uma grande companhia telefônica da Itália apresentou o novo slogan da empresa por meio de uma peça conceitual: o vídeo mostrava Gandhi apresentando o seu discurso sobre a força não violenta da verdade, o satyagraha, sendo apresentado em telões, nos computadores, nos celulares, em televisores, chegando contemporaneamente aos quatro cantos do planeta e podendo estar ao alcance, aos olhos e aos ouvidos, de milhões de pessoas no mundo. A peça terminava com uma pergunta: que mundo teríamos hoje, se ele tivesse tido a possibilidade de comunicar dessa forma?
Enquanto isso, Umberto Eco, um intelectual do qual se pode dizer tudo, menos que fosse fechado à atualidade, tendo sido um dos pioneiros no uso da linguagem televisiva na Itália, afirmava que a internet era um meio de amplificação de massa da ignorância. Nos primeiros anos de uso das redes de dados, a euforia era predominante e ele parecia o profeta das más notícias. O tempo demonstrou, no entanto, que a resposta sobre a mensagem de Gandhi no tempo das redes sociais daria razão a Eco.
De 2001 para cá o relógio do apocalipse, um instrumento de análise dos riscos de uma catástrofe mundial capaz de destruir a vida humana no planeta, assinala cada vez menos tempo para invertermos a escalada de violência. Atualmente faltam apenas cem segundos para o “fim do mundo”. Nunca estivemos tão próximos do nosso fim. Isso mostra, por outro lado, a atualidade e a urgência de aplicar o conceito de satyagraha nas nossas vidas.
Na semana passada, recordando a relação entre verdade e violência, evoquei alguns exemplos literários que ilustram como a verdade é o único caminho para interromper a cadeia de violências que provoca tragédias. A internet oferece imensas possibilidades para termos acesso ao conhecimento, mas não basta ter o instrumento nas mãos, se não sabemos o que estamos procurando. A realidade é que a internet é uma arma perigosa, antes de tudo para nós mesmos. Dá a ilusão de que pode ser usada sem uma habilitação, como se os conteúdos não destruíssem biografias, não amplificassem difamações, não naturalizassem a violência, não colocassem no mesmo patamar os que defendem a escravidão e os que lutam pela liberdade. Usar a internet ilude os usuários sobre o real potencial das palavras, que sendo o meio mais desenvolvido na base da nossa comunicação, são também o meio mais eficaz para o nosso próprio rebaixamento.
O violento, ao agredir, abre mão, antes de tudo, da sua humanidade. O difamador precisa rebaixar-se à deturpação da linguagem, da sua própria linguagem, para atingir a sua vítima. O ignorante tem necessidade de renunciar ao conhecimento e à sua elevação humana para poder ilustrar o mecanismo da barbárie, da ação por instinto, desprovida de critérios e inconsciente das consequências que pode causar.
Essa era a história que não aconteceu com Gandhi, porque enquanto não pararmos para entender a sua mensagem, é inútil que ela seja reproduzida milhões de vezes por meio dos nossos aparelhos eletrônicos. A outra história também não aconteceu com ele.
Eu entrei no elevador do meu prédio e encontrei um cartão postal que dizia: “Bom dia ao ladrão que roubou o livro que tinham deixado na minha caixa de correio. Um livro roubado é um livro lido. Se quiser devolver depois de ter lido, você já sabe a quem entregar”. O fato causou muita surpresa na vizinhança. Eu mesma autorizo que os entregadores deixem os livros que compro na entrada do prédio, pois achava que já não suscitavam interesse nesse tempo de leituras rarefeitas. Uma vizinha me disse: “engano, hoje roubam tudo”. Fiquei com um sentimento ambivalente no meu coração: feliz que haja leitores, ainda que roubem para ler; inquieta com a possibilidade de que tenham roubado o livro como quem rouba um celular, como quem rouba um vestido, como um objeto desprovido de valor imaterial e eterno, como somente as palavras são capazes de fornecer.
Gislaine Marins
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