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Impostos ou a arte da gentileza social

Há 1 ano
Impostos ou a arte da gentileza social

Quando telefonei para o meu contador, avisando que era hora de eu pagar os meus impostos, ele deu uma risada.

“A senhora é a única cliente que me telefona dizendo que quer pagar impostos!”

Então começou uma discussão, porque ele dizia que eu só deveria pagar depois de apresentar a declaração anual do imposto de renda, enquanto eu afirmava que devia pagar trimestralmente, de acordo com a renda que ia obtendo ao longo do ano.

Para resolver o impasse, fiz uma proposta: visto que não sou especialista em tributação, aceitaria o conselho dele, mas se eu estivesse certa, ele pagaria a multa pelo atraso. Ele concordou.

Então, como não sou especialista, mas sou boa leitora, a multa chegou, e o contador pagou a diferença.

Não estou escrevendo para falar mal dos contadores. O que quero dizer é que a vida fiscal é tão complexa que até os contadores se enganam. E como eu não enfrentava aquela complexidade toda, mas apenas o meu caso específico, pude ler com calma as regras tributárias e fazer a interpretação correta. As leis fiscais são uma dor de cabeça para os italianos. Mas vamos ao caso do Brasil. O nosso não é um problema de grande complexidade, mas de interpretação e desigualdade.

Por exemplo, a classe média em geral opõe-se a qualquer reforma fiscal, porque interpreta mal. Quando ouvem dizer que se pretende taxar os mais ricos, acham que estão falando da classe média. Daí a defender os privilégios dos latifundiários é um passo. Porque a classe média sabe que existe desigualdade, mas interpreta mal. Interpreta que precisa defender os privilégios fiscais dos latifúndios por achar que irão aplicar ao seu apartamento financiado em vinte anos com setenta metros quadrados o mesmo valor que aplicariam ao latifúndio. O que para o latifundista seria uma espécie de cócegas tributária, para o cidadão de classe média significaria perder talvez o seu único teto. Confundem percentual com absoluto. E já que a taxação do latifúndio significa pouco para o latifúndio, defendem o privilégio e a desiguladade social por medo de perdem o pouco que possuem. Está tudo errado.

O princípio da justiça tributária está na proporcionalidade, ou seja, quem ganha mais paga mais, quem ganha menos paga menos. É claro que estamos longe de ver esse princípio adotado plenamente. Em primeiro lugar porque não há taxação das grandes fortunas. Em segundo lugar porque o grande peso fiscal acaba recaindo sobre a classe média trabalhadora – eu saliento isso, trabalhadora – porque todo mundo que tem imposto retido na fonte e paga carnê do leão trabalha para isso e não é tão miserável a ponto de ser isento e ter direito a auxílios estatais, mas certamente é uma camada que paradoxalmente acaba penalizada por ter a sua renda oficialmente contabilizada e taxada pelo fisco.

A grande desigualdade está aí: no peso tributário que recai sobre a classe média, na injustiça social que marginaliza os mais pobres e nos privilégios que isentam os mais ricos de contribuírem para o desenvolvimento e para a distribuição de riqueza no nosso país. O grande erro está no fato de a classe média rejeitar a sua condição social, achando que a sua luta por justiça não é a mesma daqueles que lutam por um prato de comida.

A grande tragédia, porém, são os milionários brasileiros pensarem ainda como colonialistas escravocratas, para quem a riqueza é uma conquista individual e o trabalho para alcançá-la deve ter os menores custos possíveis. Tudo o que ganham querem exclusivamente para si e querem isso violando as leis, violando as pessoas, violando o Estado e querem sem nenhum compromisso com o futuro. É por isso que continuamos assistindo a casos de trabalho escravo, sonegação fiscal e passividade empreendedora, esperando que qualquer iniciativa de desenvolvimento econômico seja financiado pelos cofres públicos. Não por acaso, no nosso país, e especialmente durante a gestão de Paulo Guedes, o Ministério da Economia priorizou o financiamento das grandes empresas e o Ministro afirmava que financiar as pequenas empresas era investimento perdido. Estamos vivendo os últimos dias de um governo que pensava e agia exatamente para manter os privilégios consolidados e para aumentar ainda mais o abismo entre ricos e pobres.

Precisamos mudar o rumo. O momento é agora. Nunca na história da redemocratização ficou tão clara a importância de entender o significado dos impostos na vida de um país. É um significado civilizacional. O Estado não arrecada para destruir a vida da classe média, nem deve deixar de arrecadar para corroborar a economia colonialista arraigada na nossa história. Pelo contrário, ao arrecadar impostos, buscando alcançar o equilíbrio e a justiça social, o Estado pretende romper a barbárie individualista. O que se vê ainda hoje, no Brasil, é a feroz lei do homem como lobo do homem, como diria Thomas Hobbes, no século XVII. O que podemos alcançar é um novo contrato social, que nos traga para o século XXI. Se Hobbes não acreditava na amizade, senão por conveniência pessoal, eu acredito nos impostos como instrumento de redistribuição da riqueza e como alavanca de desenvolvimento. Compreender que podemos crescer todos, cada um na medida das próprias possibilidades e oportunidades é interpretar os impostos como uma forma de gentileza social, um gesto de responsabilidade e de reconhecimento por aquilo que somos como comunidade e sobre o desenvolvimento que podemos alimentar juntos. 

Talvez essa não seja a melhor mensagem para o período natalício, mas é a questão que mais me atormenta atualmente. Então, que o Brasil possa recolher mais impostos, de forma mais justa. Que um dia todos os pobres possam ter deixado a condição de miséria e possam tornar-se contribuintes. E que um dia os ricos se arrependam do desespero econômico e existencial que causaram, ao escravizar, explorar e humilhar pessoas cuja única culpa foi não terem nascido com o privilégio carimbado em uma barra de ouro.

Sobre o autor

Gislaine Marins

É doutora em Letras, professora, tradutora e mãe.