Nem tudo o que se quebra é líquido

O vidro parece sólido e frágil porque vulnerável a choques, mas a sua natureza intrínseca nos fala de transparência, preciosidade, durabilidade. Era um dos materiais preferidos de Oscar Niemeyer, um elemento impactante e privilegiado nas suas obras, como a sede da ONU, em Nova Iorque, e os prédios públicos de Brasília. O seu último projeto, concluído postumamente, também dava amplo espaço ao uso do vidro: é o refeitório de uma fábrica na Alemanha, em que a preocupação do arquiteto era permitir que os trabalhadores tivessem uma visão do panorama enquanto faziam a pausa. Vista de fora, parece uma bolha encaixada no último andar do prédio, na verdade revela a preocupação que o arquiteto sempre teve com o aspecto humano.
De fato, Niemeyer dizia que a vida é mais importante do que a arquitetura e o seu único arrependimento em relação ao projeto da sede da ONU foi não ter insistido com Le Corbusier para manter a praça monumental que ele gostaria de realizar, colocando o prédio de vidro em um canto do terreno. Ele era jovem e acatou a proposta do mestre, mas até o fim da vida continuou achando que seria melhor ter mantido a praça.
O vidro é a grande força de Brasília, porque para manter a sua estrutura cristalina é preciso mais do que projetos e segurança: é necessária uma cultura capaz de ver entre os palácios e as praças a nossa disponibilidade para nutrir a sociedade com valores democráticos e humanistas. O poder está e deve continuar à vista, o exercício da política deve ser cada vez mais transparente, a justiça deve continuar límpida, embora a sua alegoria seja vendada, porque alude à exclusão de favoritismos e ressaltando a isenção do juízo.
Na antiguidade, o vidro era considerado tão precioso quanto o ouro e a sabedoria. Taças de vidro eram colocadas nas tumbas dos faraós. O termo que chegou a nós para designar esse material provém do latim, o “vitrum”, que se refere ao verbo “ver”, ou seja, material que permite ver, que transparece. O vidro, material antigo e durável, que não se deteriora ao contato com a maioria dos materiais corrosivos usados no mundo, tornou-se pela mão do nosso maior arquiteto um símbolo do que há de mais moderno, projetado para o futuro sem esquecer o passado.
O vidro também é o mais líquido dos elementos sólidos. Quando se fala de sociedade líquida, não podemos deixar de lembrar de Zygmunt Bauman, que a identifica mais claramente a partir dos anos 60, descrevendo-a como característica de um período marcado pela deterioração das relações sociais e pela prevalência da lógica individualista sobre todas as demais: a finança sobre a economia, o consumo sobre a demanda, o lucro sobre o desenvolvimento, o sucesso individual sobre o coletivo. Brasília, com os seus vidros repostos no lugar são uma declaração visível de resistência à lógica que invisibiliza a fragilidade humana e exalta a prepotência do mais forte. Afinal, a realidade existe para desmentir os teóricos e estimular a busca de novas soluções e ideias.
Nem tudo o que se quebra é líquido: quem busca cataratas deve antes escrever o rio. Superando a curva do ódio, a vida flui no seu curso. Há arte no observar a paisagem, na atenção à força da corrente, no controle dos remos. Há sabedoria em descobrir a força líquida que indica a coragem necessária para navegar. E para chegar à cascata, avaliar o salto, considerar o mergulho e o retorno à superfície. Ninguém salta antes de percorrer todo o leito, ninguém pula antes de ter aprendido as lições das correntezas. Ninguém pode quebrar vidros sem conhecer as suas propriedades, a sua durabilidade, o seu significado, a sua frágil força que nos interpela. Certas rupturas são mais traumáticas para quem as comete do que para quem as sofre. E assim foi com Brasília: promoveram a tarde dos estilhaços. Os vidros foram repostos, avisando que nem tudo o que se quebra é destrutível.

Gislaine Marins
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