A cigarra e a formiga 2.0

Um elefante incomoda muita gente, alguns artistas incomodam muito mais. A arte não embeleza somente, a arte desloca a nossa resignação para a casa das dúvidas, desaloja o nosso conforto, irrita o poder.
Aconteceu com um policial militar italiano, afeito a cantorias. Era um profissional exemplar e um cidadão irrepreensível. Declarava tudo o que fazia no trabalho à sua chefia e tudo o que ganhava ao implacável fisco. Achava que estava em paz consigo e com o mundo. E cantava. Depois do horário de trabalho, fique claro. Nas horas vagas. Como tantos artistas que precisam ganhar o pão como formiguinhas, mas conhecem o encanto das cigarras. Não sabia que os artistas remam cada vez mais contra as marés de todas as estações: foi traído pela sua honestidade.
Constatando que o policial tinha declarado no imposto de renda os cachês que recebia (a “enorme” soma de duzentos euros ao mês, aproximadamente), o seu superior achou que era justo – dura lex, sed lex – denunciar a gravidade da situação: sim, ele declarou o que ganhou fora do trabalho, mas não pediu autorização para cantar fora do expediente. A uma formiga nunca deve ser concedido o devaneio de virar cigarra. Aos agentes da ordem pública não deve ser autorizado o sonho e a cantoria, coisa de vadios, boêmios. E de artistas.
Embora não se saiba ao certo como se deu a exoneração de Vinicius de Moraes do serviço diplomático brasileiro, uma das hipóteses mais conhecidas é que ele teria sido afastado por ordem do próprio ditador Costa e Silva com a frase lapidar: “Demita-se esse vagabundo”. E o que dizer de Rubem Fonseca, retirado de circulação pela ditadura e novamente excluído do rol das leituras escolares por Bolsonaro? E Chico Buarque, que recebeu o prêmio Camões em atraso porque o mesmo presidente recusou-se a assinar o seu diploma? A arte incomoda muita gente, como sintetiza Eduardo Galeano, na mini-crônica “Janela sobre as proibições”:
“Na parede de um botequim em Madri, um cartaz avisa: proibido cantar.
Na parede do aeroporto do Rio de Janeiro, um aviso informa: é proibido brincar com os carrinhos porta-bagagem.
Ou seja: ainda existe gente que canta, ainda existe gente que brinca.”
O aviso continua atual e inexorável: levado à justiça, o policial seresteiro foi condenado a pagar à sua repartição o valor dos cachês recebidos por não ter avisado à chefia que cantaria fora do seu turno de trabalho. Sabe-se lá se tão severa sentença atribuirá à instituição o dever de reembolsar os impostos pagos pelo desventurado.
Essa seria apenas uma crônica, se não houvesse uma questão de poder. Poder que se aplica com métodos e sistemas análogos da menor formiga ao maior artista. Essa crônica poderia continuar contando que recentemente um premiado ator italiano mereceu a crítica e a irritação do poder por lembrar que todos os seres humanos possuem uma dignidade intrínseca, tenham eles um passaporte europeu ou tenham nascido na Palestina. Mas o que importa aqui é outra coisa: é entender que, numa democracia, os governantes deveriam estar a serviço das suas comunidades em vez de usar os mandatos como prerrogativa para exercer o poder de maneira incontestável. E perceber que, ao verem tais exemplos, qualquer chefia acredita ter um poder não somente sobre as funções, mas sobre a inteira vida dos seus subordinados.
Em tempo, Platão fala das cigarras em Fedro. Colocando as suas ideias na boca do mestre Sócrates, o filósofo exalta as cigarras, porque estão desvinculadas das necessidades biológicas. Não bebem nem comem: cantam literalmente até morrer. Assim são os homens livres, capazes de desejar algo além das necessidades vitais: a beleza, a paz, a ética. Seria também o caso de lembrar: beleza, paz e ética não são um luxo. Embora não matem a fome, são condições necessárias para que os homens não vivam na miséria material e espiritual. E ajudam a entender que algumas sentenças podem ser tecnicamente aplicáveis, mesmo desconsiderando valores que cigarras, artistas e policiais cantores achariam nobres do ponto de vista humano.

Gislaine Marins
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