Valorizar os santos para além da devoção
Diariamente, conforme a sua liturgia, a Igreja celebra a vida de um ou mais santos. São pessoas que, a despeito de suas limitações humanas, deram um testemunho real de fidelidade a Cristo, o que transformou as suas vidas e a de muitos com quem conviveram. Muitos deles são desconhecidos do grande público e outros, bastante famosos, são objeto de especial devoção por multidões ao redor do mundo, o que, para mim, pode ser considerada expressão legítima de admiração e carinho.
Mas como não sou uma pessoa “do tipo devocional”, reconheço que talvez não consiga compreender a profundidade dessa expressão da fé, especialmente a dita popular. Nem por isso deixei de me interessar pela vida dos santos. Pelo contrário: como historiador, atividade que também abracei profissionalmente, dediquei (e ainda dedico de alguma forma) meus estudos à vida de santos, especificamente mediante a leitura crítica de hagiografias, obras que combinam biografia e catequese.
Já muito jovem me interessava pela leitura de relatos sobre a vida dessas pessoas. Isso me fez admirá-las, apesar de certa fantasia contida em alguns textos hagiográficos - admiração que vem da experiência de sofrimento, de superação e, sobretudo, de humildade e amor ao permitir que Deus se tornasse, de fato, o protagonista da história delas.
Sinto que, muitas vezes, essa devoção piedosa aos santos tende a ignorar o verdadeiro significado da vida desses personagens da história, isto é, aquilo que nos serve de aprendizado no que diz respeito a uma existência coerente com o Evangelho. Além disso, a devoção por si só pode implicar uma postura meramente sentimental, quando não supersticiosa e instrumentalizadora da fé, que leva as pessoas a ter uma relação de barganha com os santos e com Deus. De fato, há muita gente que leva a sério práticas ou ideias sem qualquer fundamento histórico, teológico ou doutrinal no cultivo da sua relação com os santos. Outras tendem a ignorar o contexto histórico em que viveram muitos desses heróis da fé ou a razão pela qual suas experiências de vida foram narradas dessa ou daquela forma.
Isso me faz lembrar de quando via muitas jovens na minha antiga paróquia em Bauru (SP) em missas dedicadas a Santo Antônio, motivadas por conseguir uma ajudinha do “santo casamenteiro” para encontrar um namorado ou marido, sem saber que a razão para essa crença tem origem numa lenda sobre o santo. De qualquer modo, não é demais lembrar que, embora possamos cultivar a prática de pedir essa mãozinha aos santos, é fato que o milagre (grande ou pequeno) é graça de Deus, que é quem sabe realmente o que precisamos, porque nos conhece interiormente. Aliás, essa intimidade com Deus é, com certeza, uma das marcas da vida dos santos.
É evidente que, por uma postura cristã, precisamos respeitar as pessoas, independentemente de suas crenças. Mas, no ambiente estritamente eclesial, é preciso ajudar muitas delas a superar essa fé ainda ingênua, infantil, distante da razão (e do pensamento teológico). Igrejas e romarias repletas de fiéis devotos são, sem dúvida, comoventes demonstrações de fé. Mas elas podem encobrir posturas devocionais que são obstáculos a uma compreensão crítica da realidade e um consequente comportamento ético cotidiano na medida em que limitam a relação com o sagrado a uma visão mítica, alienada e alienante. Superar isso é um desafio antigo, mas que permanece inegavelmente atual.
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Artigo publicado originalmente na edição de outubro deste ano da revista Cidade Nova.
Luis Henrique Marques
Jornalista e editor-chefe das revistas Cidade Nova e Ekklesía Brasil, da Editora Cidade Nova. É mestre em comunicação e doutor em história pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e tem pós-doutorado em comunicação pela Faculdade Casper Líbero. Foi secretário da Diretoria da SIGNIS Brasil no triênio 2020-2022 e editor-chefe da Agência SIGNIS. Blog profissional: prof-luis-marques.webnode.com
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