Cookies e Política de Privacidade
A SIGNIS Agência de Notícias utiliza cookies para personalizar conteúdos e melhorar a sua experiência no site. Ao continuar navegando, você concorda com a nossa Política de Privacidade.

Quaresma: tempo de rever projetos de vida!

Há 2 anos
Quaresma: tempo de reafirmar projetos de vida ou de revê-los, mas com um sentido profundo
Quaresma: tempo de reafirmar projetos de vida ou de revê-los, mas com um sentido profundo (foto por Site: Diocese de Itumbiara)

[Na última] Quarta-Feira de Cinzas [2 de março], tem início o tempo da Quaresma. Ela é parte do calendário litúrgico cristão, uma tradição que vem dos primeiros séculos da era cristã, que representa uma forma celebrativa e didática de viver a fé. A história de Jesus é contada durante o ano, por meio de dois ciclos festivos ou extraordinários, Natal e Páscoa e dois tempos comuns entre eles.

A Quaresma são os quarenta dias que antecedem o domingo da Páscoa, que abrem o Ciclo Pascal do Calendário, após o primeiro Ciclo Comum. Estes dias procuram recuperar o sentido do número 40 registrado nos textos sagrados.

[...] são muitas as referências ao número 40 nas narrativas da Bíblia cristã. Da conhecida história do dilúvio (os 40 dias em que a terra ficou sob águas), passando pelo tempo do êxodo do povo hebreu no deserto, do Egito à Terra Prometida (40 anos), ao número de dias que Jesus passou no deserto antes de iniciar sua intensa vida pública (40 dias), em todas elas, este número indica, não um tempo cronológico exato. De acordo com a cultura e visão do mundo dos povos do Oriente Médio, este número se refere a um momento vivido na sua completude, que, frequentemente, marca a realização de um tempo significativo de decisões e mudanças.

É por isso que, no contexto cristão, um dos textos mais importantes para reflexão durante a Quaresma é a narrativa sobre Jesus no deserto, conhecida como "As três tentações de Cristo". O texto conta que, antes de começar sua vida pública, tendo se retirado para o deserto, para um momento de preparação, de mudança, Jesus foi tentado três vezes pelo diabo. As três tentações representavam desafios e, se respondidos como sugerido pelo diabo (do grego diabolos, caluniador, opositor, criador de confusão e divisão), dariam novo rumo às ações do Nazareno. Tornaram-se, então, importante momento de decisão. Eram elas: (i) transformar pedras em pães, (ii) receber autoridade e poder sobre todos os reinos do mundo [no caso, sobre o Império Romano que os dominava], (iii) subir ao ponto mais alto do Templo de Jerusalém e se jogar para que anjos o amparassem.

Nada relacionado aos prazeres do corpo (da carne), base da moralidade religiosa, que tanto apelo exerce em círculos cristãos, em especial para reprimir e oprimir as mulheres. As tentações de Jesus passam mesmo é pelas propostas da parte do adversário (o diabo) dos projetos de vida e de ação de Jesus – o Evangelho do amor, da misericórdia, da solidariedade, da tolerância, do despojamento.

Primeiramente, a proposta de ele transformar pedras em pães, em um mundo de famintos, a fim de atrair consumidores de religião sem conteúdo, interessados em uma imediata satisfação material, tornando oculta a necessidade de justiça social na busca pelo "pão".

Também, a oferta de autoridade e poder sobre os reinos do mundo [naquele momento o Império Romano], mantendo-se na lógica da dominação, da violência e da exploração, própria dos Impérios.

E por fim, se jogar do ponto mais alto do templo para ser amparado por anjos, oferecendo um grande show da fé, e atrair e distrair multidões, mais uma vez, com uma religião sem conteúdo e sem vínculo com a vida plena para todas as pessoas. 

Segundo os Evangelhos, Jesus disse "não" a tudo isto, em nome de seu compromisso radical com seu projeto de vida e de ação, o Evangelho.

A Quaresma é um tempo em que cristãos são chamados a se recordarem destas tentações, se inspirarem neste compromisso radical de Jesus e sua fidelidade e coerência com ele. Com isso, são instados a se arrependerem de práticas e ações que os aproximam mais das propostas diabólicas e os distanciam do Evangelho e mudarem de rumo.

Estou no grupo dos poucos evangélicos que tiveram chance de aprender e valorizar este período como uma oportunidade de revisão da vida. Digo isto por causa da teologia e do jeito de cultuar e de ser que as igrejas protestantes (evangélicas) construíram no Brasil. Esta cultura religiosa faz com que a grande maioria dos fiéis deste segmento desconsidere o calendário cristão e seus ensinamentos, compreendendo-o como propriedade do Catolicismo Romano.

Não é preciso muito esforço para se avaliar que, de fato, a Quaresma é desvalorizada, porque ela não cabe no discurso e ações de lideranças religiosas que dizem "sim" às propostas-tentações de religião de sucesso, de assistencialismo que enfatiza apenas o material como elemento atraente de público, do espetáculo e de sede poder eclesiástico e político partidário.

Por isso, mais do que nunca, a Quaresma, é um desafio e uma oportunidade de arrependimento e mudança. Em especial, no contexto de insegurança pública, econômica, ambiental e sanitária que vivemos no Brasil, agravada pela falta de paz e de justiça dos projetos poder econômico-políticos, expressas no armamentismo e no mundo em guerras.

É um chamado à revisão da vida para pessoas religiosas, mas também uma inspiração para as que não são: a partir da atitude coerente assumida por Jesus, tomar este período para ser vivido na sua completude. Um momento para reflexão, decisões e mudanças. Tempo de reafirmar projetos de vida ou de revê-los, mas com um sentido profundo: se opor às tentações, rejeitando aquilo que represente uma vida superficial e sem conteúdo, que comprometa a paz com justiça, nossa autenticidade e dignidade.

 

Artigo publicado originalmente pela revista Carta Capital, no dia 2 de março de 2022.

Sobre o autor

Magali Cunha

Jornalista e doutora em Ciências da Comunicação. É pesquisadora do Instituto de Estudos da Religião (ISER) e colaboradora do Conselho Mundial das Igrejas. É articulista da revista Carta Capital, respondendo pela coluna Diálogos da Fé. É também editora-geral do Coletivo Bereia – Informação e Checagem de Notícias.