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O passado não está morto: a atualidade do Décalogo do Voto Ético Cristão
O passado não está morto: a atualidade do Décalogo do Voto Ético Cristão
Há 8 meses

Na linha do que escrevi neste espaço há duas semanas, a propósito do início oficial da campanha eleitoral de 2022, quero recuperar a memória dos grupos evangélicos que, há três décadas, atuaram na defesa de uma ética cristã em contraponto à instrumentalização abusiva da religião na política nacional.
Estes grupos reagiram ao fisiologismo (troca de votos por vantagens) que passou a marcar a identidade da primeira Bancada Evangélica, com 32 parlamentares, no Congresso Nacional Constituinte eleito em 1986. Lideranças evangélicas críticas a esta postura manifestaram-se publicamente à época. Dali nasceram articulações para atuação nas eleições diretas de 1989, as primeiras para a Presidência do Brasil após a ditadura militar.
Estas articulações geraram apoio evangélico à campanha de Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Lula era acusado por expressiva parcela de religiosos de ser promotor do comunismo, perseguidor de igrejas que visava fechá-las e pôr fim à liberdade religiosa e de expressão. Ao fim, o apoio massivo foi dado por conservadores a Fernando Collor de Mello (PRN), apresentado como homem de Deus, honesto e capacitado para uma nova política. (Parece incrível que este discurso de 1989 se mantenha e tenha ressonância hoje!).
Como resultado do processo, nasceu, em 1990, o Movimento Evangélico Progressista (MEP), que promovia reflexões e estimulava a participação de evangélicos na política institucional, como um bloco informal e suprapartidário. As bases eram do movimento evangelical (conservador na teologia e progressista em temas sociais). Na mesma direção foi fundada em 1991, a Associação Evangélica Brasileira (AEVB).
Nas fronteiras do MEP e da AEvB estavam os grupos ecumênicos remanescentes da Confederação Evangélica do Brasil, vinculados ao Conselho Nacional de Igrejas (CONIC) e a organizações ecumênicas de serviço, identificados com o progressismo libertário na teologia e nos temas sociais mais amplos.
Nas eleições de 1994, mantido o quadro da polarização entre evangélicos e a instrumentalização da religião na campanha eleitoral, a Conferência da AEvB aprovou o Decálogo do Voto Ético Cristão. Reproduzo aqui este conteúdo com um convite para que leitores e leitoras reflitam sobre a atualidade deste documento e a conexão com o contexto no qual ele foi elaborado.
I. O voto é intransferível e inegociável. Com ele o cristão expressa sua consciência como cidadão. Por isso, o voto precisa refletir a compreensão que o cristão tem de seu País, Estado e Município;
II. O cristão não deve violar a sua consciência política. Ele não deve negar sua maneira de ver a realidade social, mesmo que um líder da igreja tente conduzir o voto da comunidade noutra direção;
III. Os pastores e líderes têm obrigação de orientar os fiéis sobre como votar com ética e com discernimento. No entanto, a bem de sua credibilidade, o pastor evitará transformar o processo de elucidação política num projeto de manipulação e indução político-partidário;
IV. Os líderes evangélicos devem ser lúcidos e democráticos. Portanto, melhor do que indicar em quem a comunidade deve votar é organizar debates multipartidários, nos quais, simultânea ou alternadamente, representantes das correntes partidárias possam ser ouvidos sem preconceitos;
V. A diversidade social, econômica e ideológica que caracteriza a igreja evangélica no Brasil impõe que não sejam conduzidos processos de apoio a candidatos ou partidos dentro da igreja, sob pena de constranger os eleitores (o que é criminoso) e de dividir a comunidade;
VI. Nenhum cristão deve se sentir obrigado a votar em um candidato pelo simples fato de ele se confessar cristão evangélico. Antes disso, os evangélicos devem discernir se os candidatos ditos cristãos são pessoas lúcidas e comprometidos com as causas de justiça e da verdade. E mais: é fundamental que o candidato evangélico queira se eleger para propósitos maiores do que apenas defender os interesses imediatos de um grupo religioso ou de uma denominação evangélica. É óbvio que a igreja tem interesses que passam também pela dimensão político-institucional. Todavia, é mesquinho e pequeno demais pretender eleger alguém apenas para defender interesses restritos às causas temporais da igreja. Um político de fé evangélica tem que ser, sobretudo, um evangélico na política e não apenas um “despachante” de igrejas. Ao defender os direitos universais do homem, a democracia, o estado leigo, entre outras conquistas, o cristão estará defendendo a Igreja.
VII. Os fins não justificam os meios. Portanto, o eleitor cristão não deve jamais aceitar a desculpa de que um evangélico político votou de determinada maneira porque obteve a promessa de que, em assim fazendo, conseguiria alguns benefícios para a igreja, sejam rádios, concessões de TV, terrenos para templos, linhas de crédito bancário, propriedades, tratamento especial perante a lei ou outros “trocos”, ainda que menores. Conquanto todos assumamos que nos bastidores da política haja acordos e composições de interesse, não se pode, entretanto, admitir que tais “acertos” impliquem na prostituição da consciência cristã, mesmo que a “recompensa” seja, aparentemente, muito boa para a expansão da causa evangélica. Jesus Cristo não aceitou ganhar os “reinos deste mundo” por quaisquer meios, Ele preferiu o caminho da cruz.
VIII. Os votos para Presidente da República e para cargos majoritários devem, sobretudo, basear-se em programas de governo, e no conjunto das forças partidárias por detrás de tais candidaturas que, no Brasil, são, em extremo, determinantes; não em função de “boatos” do tipo: “O candidato tal é ateu”; ou: “O fulano vai fechar as igrejas”; ou: “O sicrano não vai dar nada para os evangélicos”; ou ainda: “O beltrano é bom porque dará muito para os evangélicos”. É bom saber que a Constituição do país não dá a quem quer que seja o poder de limitar a liberdade religiosa de qualquer grupo. Além disso, é válido observar que aqueles que espalham tais boatos, quase sempre, têm a intenção de induzir os votos dos eleitores assustados e impressionados, na direção de um candidato com o qual estejam comprometidos.
IX. Sempre que um eleitor evangélico estiver diante de um impasse do tipo: “o candidato evangélico é ótimo, mas seu partido não é o que eu gosto”, é compreensível que dê um “voto de confiança” a esse irmão na fé, desde que ele tenha as qualificações para o cargo. Entretanto, é de bom alvitre considerar que ninguém atua sozinho, por melhor que seja o irmão, em questão, ele dificilmente transcenderá a agremiação política de que é membro, ou as forças políticas que o apoiem.
X. Nenhum eleitor evangélico deve se sentir culpado por ter opinião política diferente da de seu pastor ou líder espiritual. O pastor deve ser obedecido em tudo aquilo que ensina sobre a Palavra de Deus, de acordo com ela. No entanto, no âmbito político-partidário, a opinião do pastor deve ser ouvida apenas como a palavra de um cidadão, e não como uma profecia divina.
Artigo originalmente publicado pela revista Carta Capital em 17 de agosto de 2022.

Sobre o autor
Magali Cunha
Jornalista e doutora em Ciências da Comunicação. É pesquisadora do Instituto de Estudos da Religião (ISER) e colaboradora do Conselho Mundial das Igrejas. É articulista da revista Carta Capital, respondendo pela coluna Diálogos da Fé. É também editora-geral do Coletivo Bereia – Informação e Checagem de Notícias.
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