Dizer a verdade, desdizer as mentiras e reconstruir a democracia
Em 2017, fake news foi eleita a palavra do ano pelo dicionário da editora britânica Collins. A expressão se tornou popular devido ao amplo uso por Donald Trump quando estava em campanha (vencedora e derrotada) para a presidência. O ex-mandatário dos Estados Unidos referia-se a coisas, a pessoas com a pecha de fake News. Só naquele ano, as menções ao termo aumentaram 365% segundo a Collins. Ironicamente, 1% para cada dia do ano. Assustador nos depararmos com este cenário em 2017 e, agora, 4 anos passados ainda travamos uma luta ferrenha contra as notícias falsas.
A prática de disseminação de mentiras se tornou corriqueira aqui no Brasil, inclusive por políticos em exercício de cargo público, como é o caso do presidente da República, Jair Bolsonaro, e sua turma. O feito mais recente do simpatizante de Trump em terras brasileiras foi uma live "bomba" em que alardeou provar as fraudes eleitorais, que tem sido o seu discurso massivo dos últimos três anos. Não houve apresentação de provas, aliás, o que houve foi uma reciclagem de notícias falsas e já desmentidas diversas vezes por órgãos oficiais. Durante a transmissão, a secretaria de comunicação do Tribunal Superior Eleitoral utilizou o Twitter para fazer a checagem dos fatos e desmentir, em tempo real, os relatos apresentados contra o sistema eleitoral.
Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, professores de Harvard e autores de Como as democracias morrem (2018), apresentam na obra (leitura recomendada!) uma comparação das eleições de Trump com exemplos históricos dos últimos 100 anos ao redor do mundo, desde a Europa com a ascensão de Hitler, Mussolini - às ditaduras militares latino-americanas nos anos 1970. O que me chama a atenção é que o livro traz, dentre outras premissas, o ressurgimento do autoritarismo, a partir de quatro sinais de alertas que podem nos ajudar no reconhecimento do autoritário. Dois dos alertas parecem dizer muito à nossa realidade: rejeição das regras democráticas do jogo (ou compromisso débil com elas) e a negação da legitimidade dos oponentes políticos. É curioso, para não dizer trágico, a similaridade do discurso com o que estamos a assistir em nosso país. É mais curioso ainda o discurso mentiroso por quem ostenta a bandeira da verdade e dos valores cristãos.
Dizer a verdade, para o cristão, não é apenas uma escolha moral, mas é a sua configuração a Jesus Cristo, que é “caminho, verdade e vida” (cf. Jo 14,6). Bento XVI, no início de sua encíclica Deus Caritas Est, afirma que “ao início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo”. Logo, o horizonte do cristão não pode ser outro a não ser o da Verdade.
No contraponto da verdade reside a mentira. Ela é figura constante nas relações sociais e parece ter se tornado uma cultura aceitável em nosso tempo, principalmente diante da sua ampla capacidade de disseminação pelos meios digitais. Quantas vezes por dia você recebe alguma mensagem mentirosa ou de conteúdo duvidoso por meio de uma mensagem no seu smartphone? Destas, quantas você averigua para checar se é verdade? Ou ainda: quantas você compartilha sem ao menos ter a confirmação?
Santo Agostinho, na sua obra De Mendacio (Sobre a mentira), elenca oito tipos de mentira. Seu objetivo não foi traçar uma hierarquia desta perversão, mas, já naquela época, mostrar que ela cria suas artimanhas de destruição. Também não é uma forma de exaltação, mas é um alerta sobre a necessidade da verdade (que ele discorre com largueza em outras obras). O bispo de Hipona adverte que “nunca se erre com mais segurança como quando se erra por amor extremo à verdade e rejeição máxima da falsidade”.
Verdade e mentira travam uma luta interminável. Portanto, em nosso tempo, além da necessária capacidade de dizer a verdade, é preciso o esforço hercúleo de desdizer a mentira. Quem se deixa possuir pela força da verdade, prolonga seus dias e a força do testemunho, e aquele que mente (quem cria, quem recria e quem compartilha) apequena sua vida espiritual, pois “a boca mentirosa mata a alma” (cf. Sb 1,11).
A frase de Joseph Goebbels, ministro da propaganda na Alemanha Nazista, "uma mentira dita mil vezes torna-se verdade" foi refeita pelo Supremo Tribunal Federal rebatendo, mais uma vez, o presidente da República: “uma mentira contada mil vezes não vira verdade!”. Precisamos inverter a lógica da serpente e nos deixarmos conduzir pelo conselho do Apóstolo Paulo aos Efésios: “deixando a mentira, que cada um diga a verdade ao seu próximo, pois somos membros uns dos outros” (Ef 4,25). Precisamos de comunicadores e meios de comunicação comprometidos com a verdade. A verdade verdadeira! Esta escolha vital consolidará a nossa democracia que parece estar em ruínas. Trago a iluminação da filósofa Viviane Mosé, durante a conferência no Mutirão de Comunicação 2021, ao dizer que o prédio que pode estar desmoronando é o mesmo que está em reconstrução. E, sem dúvida, a comunicação exerce papel importante neste processo.
Marcus Tullius
Mestrando em Comunicação pela Pontifícia Universidade Católica de Minas (PUC-Minas). Filósofo e publicitário. Coordenador geral da Pascom Brasil e membro do Grupo de Reflexão em Comunicação da CNBB. É autor do livro Esperançar: a missão do agente da Pastoral da Comunicação, pela Editora Paulus.
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