Tá, e daí?
Nos anos noventa, no campus do Vale da UFRGS, no prédio 40, uma das perguntas mais temidas pelos estudantes de Letras era: “Tá, e daí?”
A tradição popular já consolidara o ditado, segundo o qual “a palavra é de prata, o silêncio é de ouro”. As teorias sobre a pós-modernidade começavam a empregar conceitos das ciências exatas, como a ideia de inflação da informação e o fenômeno da entropia na comunicação, mas era aquela pergunta direta, exigindo resposta, que nos atormentava: “Tá, e daí?”
A pergunta inclui uma afirmação, que reconhece tudo o que foi declarado; não contesta, apenas questiona a sua relevância, a sua capacidade de produzir efeitos, o seu sentido, os seus porquês. “Tá, e daí?” era uma avaliação pior que a rejeição explícita, pior que o equívoco, era a sentença da nossa insignificância. Um texto “tá, e daí?” não vale o papel usado, a tinta gasta, o tempo perdido. É apenas mais um. Pior: poderia ser apenas menos um.
Ando revendo alguns filmes de Ken Loach, provavelmente o melhor narrador da vida da classe trabalhadora humilhada pelo neoliberalismo que floresceu a partir da década de oitenta do século passado. Ontem assisti ao belíssimo “Eu, Daniel Blake”. Em uma cena, Daniel, trabalhador encurralado pela idade, pela doença e pela burocracia, apresenta o seu currículo à funcionária encarregada de conceder o seguro desemprego. Ele entrega uma folha escrita à mão e ela afirma: “você não entendeu nada do que explicaram no curso sobre a realização de um CV.”
O curso ensinava que os trabalhadores precisavam diferenciar-se da massa, visto os altos índices de desemprego. É uma cena de uma assimetria brilhante, pois, se o currículo não correspondia à expectativa da funcionária e do mundo em transformação, o anacronismo tornava único e irrepetível o currículo de Daniel. A partir desse diálogo, a personagem emerge com crescente consciência da sua falência naquela sociedade, mas também consciente da sua dignidade inviolável. A sua não é apenas mais uma história.
À medida que o tempo passa, os meios se multiplicam e as pessoas ocupam cada vez mais espaços de comunicação. Para dizer o quê? Para desabafar? Para provocar? Para partilhar frustrações? Para comentar? E depois que tudo está partilhado, inflacionando o trabalho das nossas retinas, o que fica? E daí?
Nas últimas semanas, mais do que uma lista de temas, posso elencar aquilo que não valeu a pena escrever e enviar para publicação. Se eu me chamasse Machado de Assis, poderia escrever um texto inteiro com as frases riscadas e um comentário ao fim de cada sentença: “tá, e daí?” Do ponto de vista gráfico, ficaria atraente e provocador, mas eu não me chamo Machado e não posso rebaixar um mestre com uma mímica circense.
É melhor ser sério nas coisas alegres e prudente naquilo que nos agita repentinamente. É que falar daquilo que é bom e belo requer muito mais empenho, porque a magia daquilo que nos agrada é envolver a nossa sensibilidade de tal modo imperceptível que nos pareça natural, simples e óbvio. Não é. Assim como é difícil resistir ao impulso de ceder à irritação diante daquilo que nos ultraja: é preciso moderação para ver o que nos perturba.
Estamos no século XXI e percebo que a mesma pergunta de trinta anos atrás continua sendo válida nas minhas escolhas. A cultura popular continua sendo sábia. A ciência continua oferecendo ferramentas para compreender o mundo. E a arte continua encantando, porque é capaz de mostrar a vida como não somos capazes de vê-la ao vivenciar a nossa realidade.
Gislaine Marins
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