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Refugiado: aquele que não pode voltar atrás

Há 1 ano
Refugiados ucranianos na estação de trem em Lviv
Refugiados ucranianos na estação de trem em Lviv (foto por Ruslan Lytvyn (Canva))

Na bagagem de todo migrante, além de seus pertences, recordações e boa dose de saudade, vai sempre o desejo de um dia retornar à terra onde estão sepultados os restos mortais dos próprios ancestrais. Tanto é verdade que, de forma geral, salvo as necessidades urgentes e imediatas, os primeiros ganhos obtidos no destino acabam sendo remetidos para a região ou país de origem. Investe-se na terra natal com a esperança e o sonho de a ela voltar na condição de vencedor. O sociólogo argeliano Abdelmalek Sayad, com experiência de migrante entre a Argélia e a França, tem belas páginas escritas em que desenvolve de maneira oportuna e pertinente os conceitos de “dupla ausência” e “desejo do retorno”.

Mesmo quando a mobilidade humana (desde um ponto de vista geográfico) se torna incapaz de conduzir a uma mobilidade socioeconômica ascendente, o desejo do retorno permanece vivo, talvez mais vivo ainda, devido justamente à sua impossibilidade. O fenômeno das migrações históricas, seja da Europa para as Américas (no final do século XIX e início do XX, no cenário na revolução industrial), seja dos estados de Minas Gerais e do Nordeste para o centro-sul do Brasil (nas décadas de 1930-70, no contexto do desenvolvimentismo), representava com certa frequência uma relativa ascensão no nível de vida. Hoje em dia, tornou-se bem mais difícil que a mobilidade humana seja seguida de uma mobilidade social e econômica.

A mobilidade social ascendente cedeu o lugar, em grande parte dos casos, a uma mobilidade social descendente. Não obstante estes reveses negativos, porém, os migrantes não abandonam o projeto de voltar ao solo que os viu nascer. Os estrangeiros de primeira geração, diferentemente de seus descendentes, de segunda e terceira gerações, mantêm acesa a chama dessa esperança: rever o lugar, os rostos e as histórias que foram interrompidas.

Não é o que acontece com os refugiados. Estes, na grande maioria dos casos, não podem voltar atrás. Não foi exatamente a condição de pobreza, da miséria e da fome que os fez abandonar o lugar de nascimento. Tampouco foi a falta de oportunidades para buscar o pão de cada dia. O que realmente os expulsou da própria região e/ou país foram as tensões, conflitos, guerras e, mais recentemente, as catástrofes climáticas. Via de regra, são fugitivos de um outro tipo de violência, seja esta política, ideológica, étnica ou religiosa. E atualmente cresce o número dos que fogem da natureza em fúria – os refugiados climáticos – vítimas, não raro inocentes, da reação do meio ambiente à maneira como a economia global depreda, devasta e contamina o ar, as águas e as relações entre coisas, animais e pessoas.

Ao voltar o olhar atrás, o refugiado se depara com a intolerância, o preconceito, a xenofobia e a perseguição. Pode até mesmo vislumbrar a própria detenção ou condenação à morte. Na terra de origem mora o perigo, o risco de perder a vida e de comprometer a família e os parentes. Não que os migrantes sociais e econômicos, digamos assim, também não sejam alvos de preconceito, intolerância e xenofobia. Neste caso, a criminalização normalmente está na fronteira ou no país de destino. No caso dos refugiados, a pátria se lhes tornou hostil e inóspita. O solo da benção se converteu em terra maldita. A agressividade intransigente vem dos próprios conterrâneos. Como voltar atrás? Como desfazer e refazer o passado?

Claro que a distinção entre migrantes, de um lado, e refugiados, de outro, será sempre fluída e ambígua. Com relativa frequência, a pobreza leva à rebeldia e à revolta na terra natal, e a essa contestação, por sua vez, segue-se a fuga como única forma de sobreviver. De qualquer forma, para o refugiado, o sonho do retorno se transforma em pesadelo. Retornar é submeter a si e à família a dissabores que podem ser letais. Um item indispensável da bagagem, que ainda nutre os anseios de muitos migrantes, torna-se para sempre banido. As raízes que foram arrancadas com violência do solo pátrio podem, evidentemente, ser replantadas em outras paragens, mas encontram-se proibidas de voltar à terra mãe.

Sobre o autor

Pe. Alfredo J. Gonçalves

Missionário scalabriniano, atua no serviço dos migrantes e refugiados, no momento exercendo a função de vice-presidente do Serviço Pastoral dos Migrantes (SPM), ligado à CNBB.