Cara do desemprego
O rapaz saiu da Igreja com o mesmo ímpeto com que havia entrado. Com a fúria cega de um furacão irrompeu porta adentro quase a correr. Olhou em várias direções e, vendo-me sentado num banco, colocou-se a meu lado. Um verdadeiro náufrago que, desesperadamente, busca um refúgio, um canto para fugir de tudo, de todos e de si mesmo.
Logo as palavras começaram a cair-lhe da boca. Torrenciais e ininterruptas, num efeito cascata. Nuas e cruas, duras e quentes, como carvões em brasa. Mais do que sons articulados, pareciam pedaços de carne viva, arrancados à unha de um corpo exausto. Palavras visíveis, palpáveis, das quais pendiam ainda gotas de dor e sangue.
Confusamente, atropeladamente, repetidamente – falava de mulher e filhos, família e discórdia, favela e miséria, barraco e aluguel, boteco e cachaça, amigos e traidores, trabalho e desemprego, sertão da Paraíba e sonho de São Paulo, viagem e ônibus, dinheiro e dívidas, comida e fome, chuva e frio, rua e xingamentos, roubar e pedir, polícia e cadeia!...
Palavras que iam e vinham, sem qualquer sucessão lógica, mas num círculo fechado, sem começo nem fim. Quando esquecidas, voltavam de repente; quando lembradas, se diluíam no ar. E todas elas molhadas num pranto copioso, descontrolado, de criança desamparada.
Os soluços lhe sacudiam todo corpo e as lágrimas acompanhavam o desabafo: desconexo, imperativo, sem pé nem cabeça. Respirava afanosamente e exalava cheiro de álcool e de roupa por lavar. Cada palavra, como uma pedra atirada a esmo, vinha caiar pesadamente sobre minha cabeça. Cuspida à minha cara, eu que recém acabara de almoçar.
Subitamente calou-se. Permaneceu imóvel, paralisado, como que fulminado por um raio ou um choque elétrico. Olhar perdido, sem expressão, fixo em lugar nenhum. Um silêncio de chumbo se abateu sobre nós. Enquanto ele acabara de virar do avesso seu fardo infinitamente superior às próprias forças, eu tentava digerir aquelas palavras/pedras. O sabor, para ambos, amargava na boca, engasgava na garganta, intoxicava.
Não houve tempo para perguntas e respostas. Não houve tempo para esclarecimentos. De igual forma que havia chegado e sentado no banco junto a mim, levantou-se de um único pulo. Tal qual uma mola represada que se liberta e distende. Caminhou até próximo aos degraus do altar, ajoelhou-se e persignou-se. Ali ficou, parado e mudo, rosto voltado para o alto e mãos no peito, como uma estátua que mal se sente respirar. Seguramente mais de um minuto de relógio, os segundos batendo ao ritmo de um coração dilacerado.
Em seguida, num outro lance súbito, tempestivo e inesperado, virou as costas e, a passos largos, percorreu o corredor central, desaparecendo pela porta que havia entrado. Durante a travessia da nave, nenhuma palavra lhe saiu da boca. Ouvia-se apenas o som ritmado dos chinelos gastos e sujos. A mesma ventania que o trouxera, agora o devolvia à rua, ébrio e sem rumo.
Então, dei-me conta que o rapaz, aparentemente, nada pedira. Trazia sobre os ombros vergados a metrópole surda e muda, de concreto e asfalto, rumorosa e apressada. Queria tão somente um ouvido onde pudesse descarregar o pus de suas feridas, velhas, novas ou reabertas. Queria só vencer a angústia e a solidão de uma alma transtornada por tantas avalanches.
Sozinho e solitário, ainda atônito e perplexo, fiquei perguntando pelo seu nome e sobrenome, pela sua idade, por seu endereço, pela sua vida, por seu destino, pelo parentesco!... Corri até a porta, voltei-me à direita e à esquerda, mas já havia desaparecido em meio aos transeuntes que, com os olhos no próprio umbigo, pensavam em seus afazeres.
Nunca mais o vi, nunca mais ouvi falar dele!...
Pe. Alfredo J. Gonçalves
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