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Sobram narrativas, faltam projetos

Há 2 anos
Narrativas estridentes da mídia: difícil saber qual é a realidade dos fatos
Narrativas estridentes da mídia: difícil saber qual é a realidade dos fatos (foto por Jolrn)

Por narrativa, entende-se uma versão subjetiva dos acontecimentos históricos, versão essa que nem sempre corresponde à situação real da sociedade em questão. A partir de um determinado contexto socioeconômico e político-cultural, como também a partir do lugar social que cada pessoa, grupo, organização ou corporação ocupa, desenvolvem-se múltiplas e diferenciadas narrativas, sendo que estas, vale insistir, em lugar de respeitar as pesquisas cientificamente comprovados e consolidados, representam muitas vezes pontos de vista diferentes e até mesmo contraditórios. Numa palavra, as distintas versões refletem em geral não tanto os fatos e dados objetivos, mas se servem deles para defender interesses que tendem a ser pessoais, familiares, corporativos, partidários, religiosos, políticos ou ideológicos – quando não tudo isso de forma confusa, misturada, complexa, entrelaçada.

Da mesma forma que os bolos costumam ser recheados de confeites que lhe conferem uma certa aparência festiva, a massa bruta dos eventos que envolvem conflitos e guerras, práticas políticas, interpretações históricas ou confissão religiosa costumam ser recheadas de diferentes narrativas, as quais seguem os mais variados graus e tonalidades. Nesses casos, o tempero da sopa depende de quem “cozinha” as notícias em circulação. Com razão se diz que a memória dos fatos é escrita pelos vencedores. Mas os vencidos, mesmo que sequer saibam escrever, também desenvolvem suas versões do próprio passado. Diante disso, o que é de fato história e o que é narrativa? Esse é o tipo de interrogação que jamais terá uma resposta definitiva e satisfatória, uma vez que ela mesma faz parte do jogo de interpretações, interesses e ideologias.

Nessa perspectiva, não é difícil constatar uma correlação frequente entre transformações sociais e históricas, por um lado, e proliferação de notícias convertidas em narrativas, por outro. Crises e euforia correspondem, não raro, a períodos de declínio ou ascensão, sendo acompanhados por oportunidades e oportunismos. Na subida ou na descida, lado a lado com a visão objetiva dos fatos, surge uma série de visões subjetivas, de acordo com os grupos ou facções que ocupam o xadrez político dos acontecimentos. Surgem igualmente critérios distintos de positividade ou negatividade, que podem mudar de cor de acordo com os óculos de quem observa. De tal forma que determinadas notícias podem aparecer como sombrias ou ensolaradas. A própria escolha ou organização dos fatos e dados, bem como sua interpretação, estão ambas subordinadas à pessoa, grupo ou partido que se propõe costurar o material tido como “histórico”.

No exato momento em que escrevo estas linhas, dois exemplos corroboram os parágrafos acima. O primeiro vem do exterior. Trata-se da guerra entre Rússia e Ucrânia. São tão numerosas e tão diversas as narrativas, tão distintos e tão estridentes os veículos de comunicação, que se torna difícil saber o que de fato está acontecendo no leste europeu. Mocinhos e bandidos se mesclam, se opõem, se confundem e se entrelaçam no complexo tabuleiro das batalhas. Qual a estratégia sensata e a qual a vilã? Impossível chegar a uma conclusão taxativa. O fato brutal e criminoso é que, no meio de tantas bombas e de tanto ruído, milhões de cidadãos estão desalojados ou foram obrigados a deixar o país na qualidade de migrantes e refugiados.

O segundo exemplo ocorre em território brasileiro. Neste ano de eleições majoritárias, estamos diante de uma verdadeira encruzilhada. Em meio à polarização extremada dos dois candidatos à presidência que, segundo as pesquisas, mais parecem sacudir a vontade popular, uma série de outros candidatos não se cansam de trocar farpas, ataques, denúncias e acusações recíprocas. É nesse terreno de crise e incerteza, mas também de forte expectativa, que nascem e crescem as narrativas. Umas com certa carga de sensatez; outras esdrúxulas, e outras ainda estapafúrdias. O certo é que a população se vê num campo minado, num cerrado tiroteio, em que cada um tenta gritar mais alto e obter a razão pela força da própria narrativa. Onde está a preocupação por um projeto político e econômico voltado para as necessidades básicas da população brasileira?

Sobre o autor

Pe. Alfredo J. Gonçalves

Missionário scalabriniano, atua no serviço dos migrantes e refugiados, no momento exercendo a função de vice-presidente do Serviço Pastoral dos Migrantes (SPM), ligado à CNBB.