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Migração, janela aberta para o mundo em mudança

Há 2 anos
"Esses milhões de \'condenados da terra\', para usar a expressão de Frantz Fanonn, procuram as oportunidades do capital, disputando silenciosamente as migalhas que caem da mesa dos mais abastados"
"Esses milhões de 'condenados da terra', para usar a expressão de Frantz Fanonn, procuram as oportunidades do capital, disputando silenciosamente as migalhas que caem da mesa dos mais abastados" (foto por Projeto Colabora)

São múltiplas e muito variadas as análises sobre a situação atual do planeta na era da ecomomia globalizada. Parte não desprezível desses estudos fazem das migrações uma espécie de janela para olhar ao redor do mundo. De fato, os deslocamentos humanos de massa representam ondas superficiais de correntes subterrâeas e ocultas. Em outras palavras, a mobilidade humana pode ser considerada como a parte vísivil de transformações profundas e ocultas. Antes, durante ou depois de mudanças radicais, como por exemplo a Revolução Industrial, milhões de pessoas se vêm forçadas a deixar a terra natal, para se aventurar por outros países, vizinhos ou distantes, tendo não raro de cruzar desertos e florestas, mares e oceanos.

Nas últimas décadas do século 20 e início do século 21, assistimos novamente a numerosos movimentos migratórios. Diferentemente do que costumamos chamar “migrações históricas”, os deslocamentos atuais são mais itensos, mais variados e mais complexos. Em lugar de uma origem e um destino mais ou menos pré-determinados, ou seja, um desenraizamento seguido de uma novo enraizamento, hoje, os migrantes sabem de onde partem, evidentemente, porém, ignoram quase por completo onde vão se deter e fincar os pés. Os locais de destino e o próprio futuro tornaram-se incertos. O itinerário dos migrantes tende a se converter num vaivém de muitas idas e vindas, mas com horizontes nebulosos.

Esses milhões de “condenados da terra”, para usar a expressão de Frantz Fanonn, procuram as oportunidades do capital, disputando silenciosamente as migalhas que caem da mesa dos mais abastados. Na exata medida em que os investimentos de grosso calibre trocam de país, região ou continente, deslocando-se de acordo com a abundância de matéria prima e/ou de mão-de-obra barata, os trabalhadores seguem-lhe as pegadas. Uns poucos serão absorvidos por alguns postos cada vez mais raros e exigente, outros terminarão por diluir-se nos porões obscuros do mercado informal. Uma enrome multidão deles, entretanto, está definitivamente condenada ao desemprego crônico, na condição de trabalhadores “descartáveis”, como vem alertando o Papa Francisco desde o início de seu pontificado.

Jogados de um lado para outro, nas asas de ventos cada vez mais adversos e furiosos, acabam caindo nas ruas das grandes cidades ou em suas mais longínquas periferias. Párias “invisíveis” e, ao mesmo tempo, vítimas facilmente recrutáveis pelo submundo das drogas, da prostituição precoce e do crime organizado. A cracolândia, no coração da metróle paulista, representa bem o avesso da política de produção, crescimento, progresso e consumo da sociedade capitalista. Por outro lado, a pandemia escancarou, fez emergir e agravou a situação dessa “multião dos sem”: sem terra, sem trablho e sem teto, o que fecha uma série de outras portas.

Além de vítimas, porém, os migrantes são sujeitos, profetas e protagonistas de um futuro mais primaveril. De forma consciente ou inconsciente, o simples fato de migrar, de um lado denuncia a pobreza, a miséria e a fome, bem como as graves injustiças, que segue expulsando tanta gente dos países de origem; de outro lado anuncia a necessidade de mudanças radicais, seja no que se refere à assimetria que divide nações ricas e pobres, seja nas relações do comércio internacional. Quando se põe a caminho, o migrante faz mover a mola da própria história. Seus pés e passos, aos milhões, causam tremores de terra, lançando no ar um grito tanto mais eloquante quanto mais silenciado e silencioso. Alguém ja comparou as migrações a uma gigantesca “lente de aumento”, por meio da qual ganham relevo não só os dramáticos problemas do mundo com sua desigualdade e contradições, mas igualmente “as possibilidades evangélicas, escondidas mas já presentes e operantes, nas realidades do mundo” (Paolo VI, Evangelii Nuntiandi, 1975, 70).

Sobre o autor

Pe. Alfredo J. Gonçalves

Missionário scalabriniano, atua no serviço dos migrantes e refugiados, no momento exercendo a função de vice-presidente do Serviço Pastoral dos Migrantes (SPM), ligado à CNBB.