Os anjos e os demônios da imigração

Todo processo migratório – pessoal, familiar, coletivo ou de massa – é sempre portador de valores e expressões culturais próprias. De acordo com a linha da Doutrina Social da Igreja, no coração de cada pessoa e no coração de cada cultura existem sementes do Verbo. Sementes que, evidentemente, acompanham os povos para onde quer que eles se dirijam. São esses valores que, de uma forma ou de outra, irão contribuir para o nascimento e o desenvolvimento de novas civilizações. No cenário plural da história, não é difícil encontrar nações e impérios que se enriqueceram no confronto e no diálogo com povos distintos. Vale aqui a máxima de que as diferenças, longe de empobrecerem, enriquecem o patrimônio histórico da humanidade. Por isso é que, como dizia J. B. Scalabrini, ao lado de muitos problemas, as migrações ajudam a difundir a Boa Nova do Evangelho entre os povos.
Convém, entretanto, evitar os idealismos. Se é verdade que os migrantes são portadores de inovações e descobertas que podem contribuir ao enriquecimento, também é certo que eles, na maioria dos casos, são vítimas de uma política mundial que s reduz a verdadeiros peões no complexo tabuleiro da economia globalizada. Nessa perspectiva, não raro as causas visíveis e imediatas da migração costumam esconder motivações ocultas, nem sempre confessadas nem confessáveis. Numa palavra, o fenômeno migratório por vezes não passa de uma agitação febril aparente de terremotos invisíveis e subterrâneos. De outro lado, por mais fortes que se revelem os determinismos socioeconômicos que conduzem à saída ou à fuga, resta quase sempre alguma margem para a decisão pessoal/familiar. Nem que seja para marcar a hora da partida!
Evitando ainda cair em idealismos simplistas, deve-se salientar que o migrante, além de uma contribuição positiva, carrega também consigo contradições negativas. Para dizer de outra forma, toda a migração leva na bagagem os anjos e os demônios que inevitavelmente se abrigam em cada cultura. A ambiguidade humana, com seus avanços e incongruências, corre pelas veias tortuosas dos movimentos migratórios. O próprio deslocamento, sobretudo quando compulsório, traz à tona os valores e contravalores dos povos.
Na hora da crise, do caos e da barbárie, os extremos costumam expor sua nudez, os contrastes ganham maior visibilidade. Tempos difíceis rasgam o véu que tende a esconder vícios e feridas, violência e cicatrizes. Nas cruzes e tensões, conflitos e turbulências, choro e riso caminham lado a lado. Por isso é que a incomodidade é fator de mudança, da mesma forma que o pranto e o escárnio movem pés e mãos. E movem igualmente corações, mentes e almas. Quem nasce e cresce em berço de ouro raramente quer saber de transformações profundas e estruturais. “Os incomodados que se mudem”, alerta a sábia ironia popular.
Voltando ao tema central, quem se põe a caminho o faz com seus anjos e demônios. Memórias positivas e lembranças negativas se entrelaçam. Daí a importância do encontro, do diálogo e da abertura ao novo e estranho. É justamente esse confronto recíproco que depura e purifica os valores e expressões das culturas em questão. Todo encontro abre oportunidade para o mútuo enriquecimento. A cultura, efetivamente, não consiste em um conjunto de práticas estáticas. Seu conteúdo vive uma contínua transformação. Como qualquer organismo vivo, sofre um processo de metabolismo no sentido de incorpora ou rejeitar novos ingredientes nutritivos.
Nessa dinâmica viva do metabolismo, o encontro conduz a uma esfera distinta dos valores de cada cultura singular, dando origem ao nascimento e consolidação de uma visão de mundo superior. O confronto é o espelho onde um e outro lado podem refletir-se, reconhecendo e eliminando os próprios erros, ao mesmo tempo que, com os valores positivos, abrir-se para um novo crescimento. Em tal dinamismo, o que a princípio pareciam anjos, podem revelar-se diabólicos. E inversamente, o que parecia inicialmente coisa do demônio, pode descortinar vias alternativas para a construção pluricultural e multiétnica, num patamar civilizacional mais rico.

Pe. Alfredo J. Gonçalves
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