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Eleição de extraterrestres

Há 2 anos
O astronauta Marcos Pontes, eleito para o Senado Federal: metáfora do que significaram as eleições 2022
O astronauta Marcos Pontes, eleito para o Senado Federal: metáfora do que significaram as eleições 2022 (foto por Senado Federal)

A vitória do “astronauta brasileiro” ao Senado Federal bem pode representar uma metáfora do que significaram as eleições de 2022. E vem logo a pergunta: por que a população preferiu votar em algumas celebridades, como o influenciador virtual Nikolas Ferreira de Oliveira, de apenas 26 anos, para deputado federal, ou em Marcos Fontes, o primeiro brasileiro a ter a oportunidade de viajar ao espaço? E ainda, por que escolheu, igualmente para o Senado, uma outra vez o ex-jogador Romário de Souza Faria, ou, para deputado federal, ninguém menos que o ex-ministro Eduardo Pazuello, que esteve à frente do Ministério da Saúde no momento mais letal e crítico da pandemia da Covid-19, na famigerada tragédia da falta de oxigênio em Manaus?

Invertendo a pergunta. Por que outros candidatos, largamente calibrados na prática política, com experiência na administração pública, foram fragorosamente relegados a segundo plano ou pura e simplesmente esquecidos? Dois são emblemáticos: de um lado, Márcio Luiz França Gomes, que foi sucessivamente vice-governador e governador do estado de São Paulo, entre os anos de 2015 e 2019, assumindo o governo após a renúncia do titular, Geraldo Alckmin. De outro lado, Olívio de Oliveira Dutra, que foi prefeito de Porto Alegre, governador do Rio Grande do Sul e ministro das Cidades durante o governo Lula. Ambos saíram derrotados na disputa pelo Senado, o primeiro para o homem do espaço, o segundo para o general Hamilton Martins Mourão, vice-presidente do governo Bolsonaro.

Mas a pergunta só estará completa se e quando dirigida ao próprio presidente Bolsonaro. Por que, após tantos ataques e questionamentos sobre as instituições democráticas, termina o pleito com mais de 50 milhões de votos? E isso por meio das urnas eletrônicas, tão demonizadas por ele e por seus adeptos fanatizados! Por que graves questões como o “gabinete do ódio”, a trágica expressão “e daí?”,  flagrante indiferença às vítimas e familiares do coronavírus? Os “arroubos contra os poderes Judiciário e Legislativo, as mulheres e tantos representantes da mídia”? O sistemático desmonte das políticas públicas, com grave violação dos direitos humanos dos mais vulneráveis? O segredo de cem anos, junto com o “orçamento secreto” e seu uso para o “toma lá, dá cá” das emendas parlamentares e da compra de votos?

A interrogações não ficam por aí. Por que a suspeita obsessão contra a arte e os artistas, como também contra a ciência e a academia? A negligência quanto à agenda internacional no que diz respeito à preservação do meio ambiente, em especial o cuidado com a Amazônia? A utilização indiscriminada de Deus e do discurso religioso, como instrumentalização idolátrica do poder simbólico do sagrado? O “negacionismo”, talvez o vírus mais perverso de seu governo, na exata medida em que semeia ódio e mentira, inimizade e desavença, desconfiança e discórdia, isso até mesmo no interior da família, tão hipocritamente exaltada em sua propaganda política? Um tipo de liberdade falsificada, uma vez que a mesma permite agredir opositores e adversários como se fossem inimigos figadais, acompanhada pela facilitação da compra de armas? Enfim, o descaso, deboche e desatenção aos problemas reais da população de baixa renda, com a diminuição de verbas da pesquisa, da saúde e da educação, da merenda escolar, e assim por diante?!...

Voltando à metáfora do início, no último pleito eleitoral, como de resto em outros, a população brasileira (povo ou massa, a critério de cada um) parece preferir orientar sua atenção para os extraterrestres. Em lugar de políticos com ampla experiência nas mais diversificadas instâncias da administração pública, deposita sua confiança em pessoas “envernizadas” exteriormente com algum tipo de fama, seja esta futebolística ou humorística, mediática ou provinda do campo das redes digitais. Ao Planalto Central e aos governos estaduais acabam sendo içadas, pelos votos e pelas urnas, determinadas figuras com a auréola não da responsabilidade, e sim do espetáculo. Disso resulta a crescente distância entre o Planalto e planície, os políticos eleitos e os cidadãos eleitores, os extraterrestres do poder e os simples mortais do arroz-e-feijão.

Sobre o autor

Pe. Alfredo J. Gonçalves

Missionário scalabriniano, atua no serviço dos migrantes e refugiados, no momento exercendo a função de vice-presidente do Serviço Pastoral dos Migrantes (SPM), ligado à CNBB.